A LUTA PELA TERRA NO BRASIL E O NASCIMENTO DO MST
"Lavrar a terra, lavrar a vida". Roseli Salete Caldart
O objetivo fundamental deste primeiro capítulo consiste em identificar na história do Brasil os movimentos que antecederam o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra na luta pela terra e nela pela sobrevivência. Também tem como finalidade questionar a histórica concentração da terra em nosso país, bem como a violência praticada contra os sem-terra. O Brasil é um país-continente com 600 milhões de hectares de terras cultiváveis. Desse total, 362 milhões de hectares estão nas mãos dos grandes fazendeiros, que representam apenas 2% dos proprietários rurais. Os 98% restantes, cerca de 4,5 milhões de pessoas, são os pequenos proprietários. A terra vem sendo mal distribuída desde 1530, quando foram criadas as capitanias hereditárias e as sesmarias, que deram origem aos latifúndios modernos. De acordo com o dados do Censo Agropecuário realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), nos últimos dez anos, a área ocupada por imóveis rurais era de 353 milhões de hectares, divididos em 4,8 milhões de propriedades. Dessas propriedades, 49% tinham menos de 10 hectares, ocupando 2,2 % da área. Nesse mesmo período, as propriedades com mais de 1000 hectares representavam apenas 1% do total de propriedades rurais, ocupando 45% da área. Assim Moura (2000, p. 91) afirma:
a área total dos latifúndios brasileiros (mais de 4 milhões de quilômetros quadrados) só é menor que a superfície de cinco países: Austrália, Canadá, China, Estados Unidos e ex-URSS. Os 27 maiores detentores de terras e latifúndios no país concentram um total de 25,5 milhões de hectares, área equivalente à superfície do Estado de São Paulo. Essa área corresponde a 250 mil quilômetros quadrados e é maior que 101 países.
Ainda, segundo esse autor, os 79 detentores de 276 imóveis rurais superiores a 200 mil ha (45 pessoas físicas e 34 jurídicas) ocupam uma área de 38,9 milhões de hectares, o que dá em média para cada um quase meio milhão de hectares. A área total correspondente a 389 mil quilômetros quadrados é maior do que 117 nações do planeta. A concentração da propriedade da terra em níveis tão altos, um traço histórico da realidade social do Brasil, vem acompanhada da violência. A violência é uma arma permanente à qual recorrem os latifundiários. A violência se manifesta na destruição de roças, na invasão de lares, na tortura, no trabalho escravo, no estupro de camponesas, na intimidação e assassinatos individuais ou de grupos de trabalhadores no campo. Para isso recorrem a pistoleiros profissionais, capangas, ou mesmo criminosos comuns. No período que vai de 1985 a 1999, foram assassinadas 1.169 pessoas entre lideranças de trabalhadores, religiosos, sindicalistas, advogados de trabalhadores, deputados e outras. Em relação a esses crimes, apenas 58 pessoas foram incriminadas e julgadas; dessas, somente 11 foram condenadas enquanto 47 foram inocentadas apesar das provas; dos 11 condenados, só 3 continuam presos. (MORRISAWA, 2001).
O IPAR (Instituto de Pastoral Regional) por meio da reportagem "a questão fundiária no Brasil" publicada na Revista Teológico-Pastoral - Amazônia em Outras Palavras, denuncia a absurda concentração de terras no Brasil. Fazendeiros, madeireiros, plantadores de soja, acobertados pelo discurso da produtividade, avançam sobre as terras públicas, sobre territórios ocupados por populações tradicionais – indígenas, ribeirinhos e posseiros. Dados como esses revelam a dupla face da questão da terra no Brasil: por um lado, a brutal concentração expressa na imensa estrutura latifundiária que perpassa a história de nosso país, por outro a violência praticada contra aqueles que lutam para derrubar as cercas do latifúndio e da exclusão social. Podemos afirmar como Moura (2000) que a situação fundiária no Brasil tem as seguintes características: 1-Intensa concentração fundiária; 2-Existência do trabalho escravo e semi-escravo nesses latifúndios e 3-Violência sem limites para manter sob controle o descontentamento e o protesto camponês.
E devemos acrescentar uma quarta característica: a impunidade. A impunidade é um mecanismo acionado por meio de pressões políticas e econômicas. A Justiça não existe no campo. Juízes venais, máquina judiciária viciada, interesses pessoais dos próprios juízes e suas famílias determinam que praticamente a Justiça não existe. Um olhar atento sobre a nossa história como nação nos remete aos períodos Colonial e Imperial, quando o modelo agrário brasileiro era fundamentado na grande propriedade escravista voltada para a exportação. José de Souza Martins (1990, p.13) afirma que o trabalho livre, em que a figura do colono substitui a figura do escravo na segunda metade do século XIX, deve ser entendido como uma:
Transformação das relações de produção como meio para preservar a economia colonial, isto é, para preservar o padrão de realização do capitalismo no Brasil, que se definia pela subordinação da produção ao comércio. Tratava-se de mudar para manter.
A economia colonial caracterizava-se pela predominância do comércio na determinação das relações de produção. Nessa forma de organização, o próprio trabalhador escravo entrava no processo como mercadoria, já que, antes de ser produtor direto, tinha de ser objeto de comércio, ou seja, o trabalhador escravo tinha de produzir lucro antes de começar a produzir mercadorias. Além disso, o escravo representava uma mercadoria importantíssima na medida em que a terra sem o trabalho não gerava riqueza. Portanto o trabalho escravo era de fato o gerador de toda a riqueza para o latifundiário e isso explica em grande parte o valor que os fazendeiros pagavam na compra dos escravos, em sua maioria negros vindos do continente africano. Ao analisar a economia cafeeira da segunda metade do século XIX e início do século XX, Martins (1990, p.18) afirma:
[...] as transformações das relações de produção têm menos a ver, num primeiro momento, com as modificações no processo de trabalho da fazenda de café e mais a ver com modificações na dinâmica de abastecimento da força de trabalho de que o café necessitava.
A partir do momento em que não interessava mais ao desenvolvimento do capitalismo a escravidão, o escravo vai aos poucos sendo substituído pelo imigrante europeu, por meio do colono ou do regime do colonato. Essa mudança não implicou, simplesmente, a transformação da condição jurídica do trabalhador, mas a transformação do próprio trabalhador, produzindo-se, assim, uma força de trabalho mais adequada às necessidades do capital e ao lugar que o Brasil, como país dependente da Inglaterra, ocupava nesse contexto. Assim, as novas relações de produção, fundadas no trabalho livre do colono imigrante, dependiam de novas formas de legitimação e subordinação, de modo que "[...] a exploração da força de trabalho fosse considerada legítima, não mais apenas para o fazendeiro, mas também pelo trabalhador que a ela se submetia" (MARTINS, 1990, p. 18).
Dessa forma estavam justificadas para o trabalhador livre, ou seja, o colono, as relações capitalistas de produção e com elas a exploração e a expropriação de seu trabalho, sem as quais o capitalismo não sobrevive. Enquanto o trabalho escravo se fundava na vontade do senhor, o trabalho livre devia basear-se na vontade do trabalhador e na aceitação legítima da exploração pelo capital. Nessas relações, portanto, não havia lugar para o trabalhador que aceitasse a liberdade como negação do trabalho, como era o caso do escravo, mas apenas para o que considerasse o trabalho como uma condição de liberdade. Com a abolição da escravatura era necessário, portanto, encontrar uma outra forma de renda capitalizada para a economia cafeeira.
Além disso, era preciso construir novas formas de sujeição ao trabalho, o que poderia ser dificultado pela existência de grandes áreas de terras devolutas no Brasil, que poderiam simplesmente ser ocupadas pelos escravos recém-libertos ou imigrantes que chegavam ao país. Com o objetivo de resolver essas questões, foi criada a "Lei de Terras" em 1850, que institui a compra e venda como únicos mecanismos de acesso às terras e cria novas formas de garantir o crédito hipotecário. Seguindo essa análise, Martins (1990, p.32) afirma:
Combinavam-se de novo, sob outras condições históricas e, portanto, de outra forma, aparentemente invertidos, os elementos de sustentação da economia colonial. A renda capitalizada no escravo transforma-se em renda territorial capitalizada: num regime de terras livres o trabalho tinha que ser cativo; num regime de trabalho livre, a terra tinha que ser cativa.
Dessa forma podemos perceber que a abolição da escravatura não representou realmente a libertação do negro e a melhoria das condições de sua existência, e sim uma nova forma de sujeição do trabalhador, tanto o negro, agora "livre", quanto o colono imigrante, aos mecanismos de exploração capitalista. Nesse processo, podemos perceber também como a terra vai sendo privatizada impossibilitando ao negro e ao colono o acesso a ela. A "Lei de Terras" promulgada em 1850, ao estabelecer como único critério de acesso à terra a compra, impossibilitava que aqueles que não tinham dinheiro para comprá-la pudessem adquiri-la; portanto, na prática, o negro e o colono estão excluídos do acesso a ela. Com a nova Lei, determinou-se a transferência de terras devolutas do patrimônio da União para o patrimônio dos Estados e proibiu-se a abertura de novas posses, ficando também proibidas as aquisições de terras devolutas por outro título que não fosse o da compra. Assim, a "Lei de Terras" de 1850,
[...] transformava as terras devolutas em monopólio do Estado e o Estado controlado por uma forte classe de grandes fazendeiros. Os camponeses não-proprietários, os que chegassem depois da Lei de Terras ou aqueles que não tiveram suas posses legitimadas em 1850, sujeitavam-se, pois, como assinalaria na época da Abolição da escravatura um grande fazendeiro de café e empresário, a trabalhar para a grande fazenda, acumulando pecúlio, com o qual pudessem mais tarde comprar terras, até do próprio fazendeiro (Idem, ibidem).
Desse modo, a "Lei de Terras" representou na prática a união entre o capital e a propriedade privada da terra, transformando-a numa mercadoria que somente alguns poucos poderiam ter acesso.
1.1 As origens Camponesas do MST
José de Souza Martins (1990) afirma que apesar de a maioria da população brasileira ser camponesa até, pelo menos, a segunda metade do século XX, o campesinato foi considerado como um resquício de um passado feudal que deve ser esquecido, como se fosse parte de um outro modo de produção. O campesinato produz-se com a expansão das relações capitalistas de produção no campo. É fruto do conseqüente processo de expropriação forjado na luta pela terra. Não é um camponês que não quer "entrar na terra", pois nunca a teve devido aos diversos mecanismos de concentração de terra existentes no país desde o Período Colonial, como já vimos anteriormente. Assim, nosso camponês não é um "enraizado" preso à terra, mas, ao contrário,
[...] o camponês brasileiro é um desenraizado, é migrante, é itinerante. A história dos camponeses posseiros é uma história de perambulação. [...] Tanto o deslocamento do posseiro quanto o deslocamento do pequeno proprietário são determinados fundamentalmente pelo avanço do Capital sobre a terra (MARTINS, 1990, p. 17).
A história das lutas camponesas consiste na recusa desse lugar a quem não é convidado, a quem não sabe como ou não quer participar das grandes decisões políticas do Brasil; é uma luta pelo seu pertencimento e enraizamento a terra e nela por melhores condições de vida; é um processo de luta contra um sistema que os exclui e os desumaniza, desfigurando o ser do camponês, a sua identidade, os seus valores, a sua cultura. Como afirma Fernandez (2000), a história do Brasil é a de um campesinato progressivamente insubmisso, primeiramente, contra a dominação pessoal de fazendeiros e "coronéis"; depois, contra a expropriação territorial efetuada por grandes proprietários, grileiros e empresários; e já agora, também contra a exploração econômica que se concretiza na ação da grande empresa capitalista.
Nesse sentido podemos identificar, na história do Brasil, alguns movimentos que foram fundamentais na luta camponesa pela terra, desde o famigerado "descobrimento" até aproximadamente a metade do século XX. Segundo Fernandes (2000), a luta pela terra no Brasil não é recente, datando do período colonial, com os povos nativos na defesa de seu território contra as "entradas" e "bandeiras", patrocinadas pelo governo português e por fazendeiros da época. Dessa maneira, a luta pela terra começou com a resistência dos nativos contra o genocídio histórico. A caça aos aborígines para escravizá-los teve diversos movimentos de resistência, como a Confederação dos Tamoios e a Guerra dos Potiguaras. Outra grande luta contra a escravidão aconteceu onde hoje é a região fronteiriça do Sul do Brasil com a Argentina, Paraguai e Uruguai. Nessas terras, disputadas por Portugal e Espanha, foram construídas as missões religiosas pelos padres jesuítas. Em terras comuns viveram os Trinta Povos Guaranis, onde cada povoado chegou a ter entre 1500 a 12 mil nativos. Atacados constantemente pelos bandeirantes e pelo exército de Espanha e Portugal, os povos guaranis resistiram até o limite de suas forças. Segundo Morissawa (2001, p. 60), em 1756 ocorreu o massacre brutal e derradeiro que culminou com a morte de seu líder Sepé Tiaraju,
...Quando Portugal e Espanha assinaram o Tratado de Madri, em 1750, a região onde hoje se situa o Rio Grande do Sul passou para o domínio de Portugal. Pelo acordo, todos os habitantes da região deveriam transferir-se para o outro lado do rio Uruguai, que pertencia à Espanha. Os guaranis se recusaram a deixar suas terras, onde plantavam e criavam gado, e deram início a uma guerra que durou de 1753 a 1756. O líder guarani dessa guerra foi Sepé Tiaraju, um cacique educado pelos jesuítas e que, em carta aos inimigos, deixou clara a decisão de seu povo de não deixar a terra. A resistência contra as tropas portuguesas e espanholas durou até a exaustão, em fevereiro de 1756, quando Sepé e outros 1.500 guerreiros foram massacrados.
Símbolo da luta pela terra e contra a escravidão foram os quilombos. Segundo Fernandes (2000, p.26):
Os quilombos foram espaços de resistência e para se defenderem os quilombolas também atacavam engenhos e fazendas da região. Palmares foi o maior quilombo. Localizava-se na Zona da Mata, a cerca de 70 quilômetros do litoral. Era um conjunto de povoados socialmente organizados que formou a União dos Palmares. Nessas terras os palmarinos cultivavam suas roças de milho, feijão, mandioca, cana-de-açúcar, criavam galinhas, caçavam e pescavam. Estima-se que por volta de 1670, perto de 20 mil pessoas viviam nessa região. Ganga Zumba e Zumbi foram seus principais líderes. De 1602 a 1694, Palmares resistiu, quando o exército do bandeirante Domingos Jorge Velho, enfrentou e destruiu o exército de Zumbi, aniquilando o território de palmares.
Essas lutas ganharam impulso no final do século passado e acabaram influenciando e inspirando o nascimento das principais lideranças do MST. A primeira delas ocorreu no sertão da Bahia, na região de Canudos, entre os anos de 1870 e 1897, tendo como líder Antônio Conselheiro, derrotado depois de brutais incursões das tropas federais. Para Fernandes (2000), a Guerra de Canudos foi o maior exemplo da organização de resistência camponesa no Brasil. Conselheiro e seus seguidores instalaram-se na fazenda Canudos em 1893 e passaram a chamar o lugar de Belo Monte. A organização econômica se realizava por meio do trabalho cooperado, o que foi essencial para a reprodução da comunidade. Todos tinham direito à terra e desenvolviam a produção familiar, garantindo um fundo comum para uma parcela da população, especialmente os velhos e desvalidos, que não tinham como viver dignamente. Em Canudos viveram aproximadamente 10 mil pessoas. Segundo Moura (2000, p.47):
Os grandes proprietários de terras e as estruturas de poder que os representavam saíram vitoriosos... O liberalismo republicano num pacto com as oligarquias latifundiárias destruiu até o último homem os habitantes de Canudos que ousaram pôr em execução um projeto de sociedade igualitária e de comunitarismo rústico, mas capaz de satisfazer os seus desejos e necessidades.
Acusados, falsamente, de defender a volta da monarquia, foram atacados por expedições militares de quase todo o Brasil. Mais de cinco mil soldados combateram contra os sertanejos de Conselheiro. De outubro de 1896 a outubro 1897, os ataques do exército foram enfrentados e refreados até o cerco completo e o massacre do povo de Canudos. Como bem afirmou Moura (2000) era preciso sufocar e massacrar Canudos, pois a sua vitória representaria a possibilidade de criar um outro modelo de sociedade.
Essa era a contradição entre os dois modelos de sociedades que se defrontaram: de um lado Canudos, que desenvolvia um tipo de sociedade comunitária e solidária, embora as suas forças produtivas fossem ainda rudimentares e a outra tecnologicamente muito mais "evoluída", cujo modelo era a exploração do trabalho da maioria dos seus membros pelos latifundiários. Outro movimento importante de luta pela terra aconteceu na região do Contestado, divisa do Paraná com Santa Catarina entre os anos de 1912 e 1916. Liderados pelo Monge José Maria, milhares de camponeses lutaram e derramaram seu sangue pela conquista da terra. Esses conflitos fazem parte da primeira fase de lutas pela terra no Brasil, no período republicano, sendo seguidos por outras formas de combates em momentos posteriores. Além dos conflitos citados até aqui, podemos identificar, conforme nos aponta Bezerra (1999) e Fernandes (2000), um segundo momento de lutas pela terra que tiveram um caráter violento, com a utilização de milícias armadas dentre as quais se destacam a luta dos posseiros de Teófilo Otoni em Minas Gerais, que perdurou de 1945 a 1948.
Na região de Minas Gerais, desde o início da década de 40, os posseiros enfrentaram fazendeiros interessados nas terras da construção da rodovia Rio-Bahia. Para formar as fazendas, os fazendeiros impuseram aos posseiros a condição de derrubar a mata para a formação de pastos, e só poderiam plantar para a subsistência. A Revolta de Dona "Nhoca" no Maranhão é outro símbolo de luta pela terra. Segundo Fernandes (2000), de 1950 a 1960 muitas famílias sem-terra migraram para a região, que se transformou em grande produtora de arroz. Chegaram os grileiros, constituíram a elite local e assumiram o poder político da região. Alianças políticas, entre prefeitos, governadores e grileiros, formaram o pacto da grilhagem das terras do oeste maranhense. Desde essa época, tiveram início os conflitos entre grilheiros e posseiros que transformaram a região em uma das mais violentas do Brasil, com intensos conflitos por terra e de contínua resistência dos camponeses. Ainda de acordo com Fernandes (2000), a Revolta de Trombas e Formoso marcou a luta pela terra no estado de Goiás. Trombas e Formoso eram dois povoados localizados no município de Uruaçu. Esses povoados foram atacados por jagunços e pela polícia militar.
No final da década de 50, toda a região estava organizada e dominada pelos posseiros. Fundaram a Associação dos Lavradores de Formoso e Trombas, elegeram José Porfírio a deputado estadual em 1962, fortalecendo o movimento e conquistando espaço político para negociar com o governo a manutenção da posse da terra. Criaram o município de Formoso, e a região da resistência tornou-se território dos camponeses. Com o golpe de 1964, muitos líderes foram presos e torturados. José Porfírio refugiou-se em Balsas, no Maranhão. Descoberto pela Polícia Federal, retorna para a região de Trombas e Formoso e passa a viver na clandestinidade. Foi preso em 1972 e solto em 7 de junho de 1973. Dois dias depois desapareceu. Suspeita-se de seqüestro e assassinato. No Espírito Santo, merece destaque como símbolo de luta pela terra o massacre dos camponeses de Ecoporanga no Estado do Espírito Santo.
Conforme estudos realizados por Fernandes (2000) nesse mesmo período, entre os vales dos rios Mucuri e Doce, no Espírito Santo, ocorreram vários conflitos, onde muitos camponeses foram assassinados pela Polícia Militar e jagunços. Nessa região está localizado o município de Ecoporanga. No final da década de 40, a região era contestada pelos Estados de Minas Gerais e do Espírito Santo. Essas terras estavam ocupadas por posseiros e passaram a ser disputadas por fazendeiros e grileiros que procuravam tirar vantagem daquela situação indefinida. A fonte da violência era a aliança entre o governo estadual e os latifundiários-grileiros, que promoveram uma intensa guerra contra os posseiros, com o objetivo de se apropriarem das terras daquela região. Nesse sentido, Dias (1984, p. 77) em sua obra Massacre em Ecoporanga, relata por meio das vozes, dos conflitos, das torturas e da própria vida dos posseiros, meeiros, camponeses dos povoados de Cotaxé, Estrela do Norte e Itapeba, a luta pela terra:
Acendeu-se a luta: sucediam-se os espancamentos, prisões, assassinatos de posseiros. O atual deputado Osvaldo Zanello, então secretário do Governo, enviou para a região o tenente Jadir Resende com a incumbência de tirar pela força os posseiros. De uma vez prendeu 40 deles. Estas recordações estão bem vivas na memória de quantos ali residem e nos foram relatadas por um dos mais antigos líderes dos posseiros de Cotaxé. A luta havia se acendido, os lavradores começaram a se organizar.
A realização do I Congresso Estadual dos Lavradores em 1957 em Belo Horizonte, e a do II Congresso Estadual dos Lavradores em 1962, realizado em Vitória, reunindo representantes de todos os municípios do Estado do Espírito Santo, foram importantes na organização e na luta dos camponeses pela Reforma Agrária. Como medidas fundamentais e indispensáveis para a solução da questão da Reforma Agrária, o II Congresso Estadual dos Lavradores apresentou as seguintes resoluções:
Radical transformação da atual estrutura agrária do país, com a liquidação do monopólio da propriedade da terra, principalmente com a desapropriação, pelo Governo Federal, dos latifundiários, substituindo-se a propriedade monopolista da terra pela propriedade camponesa, em forma individual ou associada, e a propriedade estatal; Máximo acesso à posse e ao uso da terra pelos que nela desejam trabalhar, à base da venda, usufruto ou aluguel a preços módicos, das terras desapropriadas aos latifundiários e da distribuição gratuita das terras devolutas; Urgente e completo levantamento cadastral de todas as propriedades de área superior a 500 hectares e de seu aproveitamento; Proibição da entrega de terras públicas àqueles que as possam utilizar para fins especulativos.
No Espírito Santo, assim como em quase todo o território brasileiro, a luta pela terra foi marcada por conflitos e violência por parte da Polícia Militar, do poder judiciário, dos latifundiários em relação aos posseiros. Sempre que foi preciso, o governo enviou tropas militares para enfrentar os camponeses revoltosos. Os ataques da Polícia Militar resultavam em queima de roças, de casas e em assassinatos. Também os grileiros colocavam seus jagunços na tentativa de conter a organização dos camponeses. Essa luta resistiu até o golpe de 1964, quando foi intensamente reprimida, e seus militantes, dispersos ou presos. Uma terceira fase de luta pela terra se daria a partir da década de 30, quando Getúlio Vargas assume o poder e temos uma primeira tentativa de industrialização do país. Esse processo trouxe implicações na estrutura latifundiária do País que passou a ser um problema para toda a sociedade. De acordo com Linhares e Silva (1999 p. 125-126):
[...] O campo era tratado como a atividade natural, única possível do país; era a época do Brasil, país essencialmente agrícola; agora o campo passa a ter uma função no programa, ainda difuso, de desenvolvimento nacional. E um pouco mais do que isso: o campo, com seu homem tradicional, passa a ser visto como um problema, uma questão, a do obstáculo ao pleno desenvolvimento do conjunto do país. Para os homens que assumem o poder na década de 1930, o desenvolvimento era sinônimo de indústria, de população bem alimentada, saudável e de erradicação do analfabetismo e de endemias. [...] Neste contexto surge uma questão: como fazer o campo brasileiro ajudar e participar do desenvolvimento nacional?
O período compreendido entre 1945 e 1964 teve como uma de suas principais características, uma aceleração do processo de industrialização. Com relação ao setor agrário, o processo iniciado na década de 1930 não seria mais detido: a capitalização do campo. Nesse contexto, explodiram, por quase todo o território nacional, conflitos entre posseiros e grileiros. Como exemplo, temos uma série de conflitos ocorridos em Minas Gerais, na região do Rio Doce. Já na década de 1940, muitos posseiros estavam sendo expulsos de suas terras por fazendeiros. Assim, aos poucos, esses posseiros vão transformando-se em sem-terra.
Segundo estudos desenvolvidos por Fernandes (2000) entre 1950 a 1960, muitas famílias sem-terra migraram para a região, que se transformou em grande produtora de arroz. Chegaram os grileiros, constituíram a elite local e logo se tornou o poder político da região. Alianças políticas entre prefeitos, governadores e grileiros formaram o pacto da grilhagem de terras da região. Nesse sentido, podemos identificar uma terceira fase de luta pela terra que compreende o período de 1950-1964 com o surgimento de vários movimentos camponeses, organizados em entidades como as ULTABs (União de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil), nas regiões Sul e Sudeste do país. Em Pernambuco, surgiu no Engenho Galiléia uma associação de foreiros denominada "Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores de Pernambuco", logo conhecida como "Liga Camponesa". De acordo com Fernandes (2000 p. 33):
Em 1954, em Pernambuco, no município de Vitória de Santo Antão, em uma propriedade denominada Engenho da Galiléia, foi criada a Sociedade Agrícola de Plantadores e Pecuaristas de Pernambuco, que por sua forma de organização ficou conhecida como a Liga Camponesa da Galiléia. Seus associados eram foreiros que pagavam ao fazendeiro renda da terra em forma de aluguel anual (foro). Reagiram ao aumento da exploração e tentativa de expropriação pelo dono do engenho e buscaram apoio com o advogado e deputado Francisco Julião, do Partido Socialista Brasileiro, que passou a representá-los.
Em 1962, foram realizados vários encontros e congressos das Ligas, reunindo representantes de vários estados. A essa altura, a mobilização era por uma reforma agrária radical. Em suas lutas, os camponeses resistiram na terra e passaram a realizar ocupações. Parte das Ligas tentou organizar grupos guerrilheiros, quando então ocorreu a prisão de muitos trabalhadores e os grupos foram dispersos pelo Exército. Com o golpe militar de 1964, as Ligas Camponesas e outros movimentos foram aniquilados, todas as organizações de trabalhadores rurais foram fechadas, e as principais lideranças camponesas foram presas ou exiladas, quando não assassinadas. Em 1964, o presidente-marechal Castelo Branco decretou a primeira Lei de Reforma Agrária no Brasil, em quinhentos anos, que foi denominada "Estatuto da Terra".
Ela vinha em resposta à necessidade de distribuição de terras como formas de evitar novas revoluções sociais. Embora decretada pelo primeiro governo militar, essa lei tinha um caráter progressista. O "Estatuto da Terra" distinguia as propriedades rurais não apenas em relação ao tamanho, mas também em relação à intensidade de exploração. Assim, classificava-se em minifúndio, latifúndio por dimensão e latifúndio por exploração. Além disso, definia a função social da terra, pela qual o proprietário que a utilizava com respeito ao meio ambiente, de forma adequada, e cumpria a legislação trabalhista, estava dando à terra sua função social. Mas o "Estatuto da Terra" jamais foi implantado. Era um "faz-de-conta" para resolver pelo menos, momentaneamente, os problemas do campo. Para tornar possível a sua política econômica, o Estado manteve a questão agrária sob o controle do poder central. Por essa política, o acesso à terra ficou fechado aos camponeses e totalmente aberto à empresa capitalista e aos latifundiários. Em termos práticos, como afirma Morissawa (2001, p. 100), o "Estatuto da Terra" acabou por favorecer os latifundiários:
Escancarou-se, então, como um instrumento estratégico para controlar as lutas sociais e desarticular os conflitos por terra. As únicas e pouquíssimas desapropriações serviram apenas para diminuir os conflitos ou realizar projetos de colonização. De 1965 até 1981, foram realizadas oito desapropriações em média por ano, apesar de terem ocorrido pelo menos setenta conflitos por terra anualmente.
O "Estatuto da Terra" escancarou-se, então, como um instrumento estratégico para controlar as lutas sociais e desarticular os conflitos por terra. As únicas e pouquíssimas desapropriações serviram apenas para diminuir os conflitos ou realizar projetos de colonização. Desse modo, apesar de o "Estatuto da Terra" aparecer, por suas definições, como querendo modificar a estrutura fundiária e punir o latifúndio, a política agrícola e agrária dos militares promoveu a modernização tecnológica das grandes propriedades. Ao mesmo tempo, os grandes proprietários tinham livre acesso aos órgãos do Estado, como o Ministério da Agricultura, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) etc., exercendo forte controle sobre o Poder Judiciário e o Congresso Nacional. Enfim, o "Estatuto da Terra" não saiu do papel e a política agrária real do Regime Militar significou, de fato, a entrega de mais terra aos comerciantes e industriais. Nesse período, grandes extensões de terras públicas da região amazônica foram entregues a grupos empresariais e também a multinacionais que, segundo o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), possuem hoje 30 milhões de hectares de terras no Brasil.
Que importância tem para o tema deste capítulo fazermos a memória histórica da luta pela terra? Tem uma relevância especial, pois podemos perceber nesse processo os precursores da luta pela terra dos quais o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra é herdeiro e continuador. É nesse contexto histórico de enfrentamento, conflito, resistência, esperança e luta pela terra, em que vários movimentos e pessoas deram as próprias vidas, que surge o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Podemos afirmar que o MST nasceu das lutas concretas pela conquista da terra, que os camponeses foram desenvolvendo de forma isolada em quase todas as regiões do Brasil, num momento em que aumentava a concentração de terras e ampliava a expulsão dos pobres da área rural, devido à modernização da agricultura e à crise do processo de colonização implementado pelo Regime Militar.
Concordamos com Caldart (2000) e Fernandes (2000) quando afirmam que a luta pela sobrevivência foi a marca histórica da resistência camponesa no Brasil. Foi assim que em 1979, no dia 7 de setembro, 110 famílias ocuparam a gleba Macali, no município de Ronda Alta, no Rio Grande do Sul. Essa ocupação inaugurou o processo de formação do MST. De 1979 a 1984, aconteceu o processo de gestação do MST. Chamamos de gestação o movimento iniciado desde a gênese, que reuniu e articulou as primeiras experiências de ocupações de terra, bem como as reuniões e os encontros que favoreceram, em 1984, o nascimento do MST ao ser fundado oficialmente pelos trabalhadores em seu Primeiro Encontro Nacional, realizado nos dias 21 a 24 de janeiro, em Cascavel, no Estado do Paraná. O marco da fundação do MST foi o "Primeiro Encontro Nacional de Trabalhadores Sem Terra", realizado em Cascavel, no Paraná, em janeiro de 1984. O encontro contou com a participação de 150 delegados de 12 estados brasileiros, inclusive do Espírito Santo.
Esse encontro tinha como finalidade reunir todas as categorias de trabalhadores rurais que, de alguma forma, lutavam para obter terra para plantar. Estimulados pelas lutas contra a ditadura militar, os trabalhadores rurais sem-terra (que antes tinham apenas a Igreja como espaço para discussão de seus problemas, sobretudo através das pastorais sociais e, principalmente, a Comissão Pastoral da Terra), resolveram se articular nacionalmente para fazer uma luta conjunta em defesa da conquista da terra. (BEZERRA NETO, 1999, p. 14).
Um aspecto fundamental no processo de formação do MST foi o trabalho desenvolvido com os trabalhadores rurais pelas Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica (CEBs), sobretudo pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), criada em 1975. O nascimento das CEBs nos remete a um movimento mais amplo de renovação eclesial, iniciado no século XX e sancionado pelo Concílio Vaticano II. Este concílio revelou seu potencial pastoral em sua abertura para o mundo e para a história e, concomitantemente, sua densidade de reflexão, postulando a imagem da igreja como povo de Deus a caminho. As CEBs vivenciaram na prática a opção preferencial pelos pobres pela da releitura que a Conferência de Medellin (1968) e Puebla (1979) fizeram na América Latina. Medellin preencheu o imaginário eclesial com a temática da Libertação e Puebla, com a evangélica opção pelos pobres.
Assim afirmam os números 640 e 643 da Conferência de Puebla (1979 p. 250, 251 e 252):
Nas pequenas comunidades, mormente nas mais bem construídas, cresce a experiência de novas relações interpessoais na fé, o aprofundamento da palavra de Deus, a participação na eucaristia e um maior compromisso com a justiça na realidade social dos ambientes em que se vive. As comunidades eclesiais de base são a expressão de amor preferencial da Igreja pelo povo simples; nelas se expressa, valoriza e purifica sua religiosidade e se lhe oferece possibilidade concreta de participação na tarefa eclesial e no compromisso de transformar o mundo.
Mesmo que se tenha certa dificuldade em encontrar traços homogêneos e constantes em todas as CEBs, há alguns elementos que, em geral, podem ser identificados: a leitura e a reflexão sobre a Palavra de Deus é um dos traços característicos das CEBs; a participação e a discussão dos problemas em forma de assembléia; a metodologia participativa que inclui a colaboração de todos na discussão, na solução e no encaminhamento concreto para a resolução de problemas que aflige a comunidade e, por fim, a prática concreta de Jesus e o sonho de realizar o Reino de Deus. As Comunidades Eclesiais de Base foram um dos espaços onde trabalhadores rurais sem-terra, expulsos do campo, se encontraram para refletir, iluminados pela Palavra de Deus, a realidade de opressão e exclusão a que foram submetidos pelo sistema capitalista. É nesse contexto histórico de luta pela terra e por uma sociedade justa e fraterna que deve ser entendida a criação do MST. No seu Primeiro Encontro Nacional (1984), o MST definiu como seus objetivos gerais:
1 - Que a terra esteja nas mãos de quem nela trabalha; 2-Lutar por uma sociedade sem exploradores e sem explorados; 3-Ser um movimento de massa autônomo dentro do movimento sindical para conquistar a reforma agrária; 4-Organizar os trabalhadores rurais na base; 5-Estimular a participação dos trabalhadores rurais no sindicato e no partido político; 6-Dedicar-se à formação de lideranças e construir uma direção política dos trabalhadores; 7-Articular-se com trabalhadores da cidade e da América Latina (MST, 1984).
O MST deliberou, como diretriz, que suas conquistas sociais e políticas só poderiam ocorrer a partir das ações de massas. E, já nessa ocasião, delimitou-se o que seria a sua marca: caminhadas, passeatas, ocupações de órgãos públicos, concentrações e ocupações. O Encontro Nacional também apresentou as principais reivindicações do que passaria a se constituir o MST. São elas:
1- Legalização das terras ocupadas pelos trabalhadores; 2-Estabelecimento de área máxima para as propriedades rurais; 3-Desapropriação de todos os latifúndios; 4-Desapropriação das terras das multinacionais; 5-Demarcação das terras indígenas, com reassentamento de posseiros pobres em área da região; 6-Apuração e punição de todos os crimes contra os trabalhadores rurais; 7-Fim de incentivos e subsídios do governo ao Proálcool e outros projetos que beneficiam os fazendeiros; 8-Mudança de política agrícola do governo dando prioridade ao pequeno produtor; 9-Fim da política de colonização. (MST, 1987).
O MST definiu, como princípio, a luta pela reforma agrária (TERRA PARA QUEM NELA TRABALHA) e uma política agrícola que assegurasse a possibilidade de os agricultores permanecerem em suas terras. Outra marca importante do MST foi a luta por uma sociedade sem exploradores e explorados. Usando o lema "SEM REFORMA AGRÁRIA NÃO HÁ DEMOCRACIA" procurou forçar os governantes da Nova República a realizar a Reforma Agrária, reivindicando que fosse feita sob o controle dos trabalhadores.
Nesse mesmo período, lançou o lema: "TERRA NÃO SE GANHA, SE CONQUISTA", deixando clara sua disposição de luta pela terra em oposição ao modelo de colonização tímido dos militares. Em janeiro de 1985, o MST realizou o primeiro Congresso Nacional de Trabalhadores Rurais Sem Terra, em Curitiba-PR, com 1.500 delegados, escolhidos em encontros ou reuniões estaduais ao longo de 1984, que definiram a luta pela terra com o lema "OCUPAÇÃO É A SOLUÇÃO" e as estruturas organizativas, associativas e suas instâncias de deliberação. Foi eleita a primeira coordenação nacional e a primeira direção nacional do movimento.
Faz-se necessário observar que o MST, no decorrer dos anos, modifica-se e recria-se nas suas ações políticas, apresentando-se, a partir dos anos 90, como um movimento social que luta por mudanças mais amplas que a simples divisão de terra. A ampliação das reivindicações e das ações é fundamental para o crescimento do MST. Analisando as aspirações dos trabalhadores rurais, MARTINS (1990) afirma que eles:
...Querem mais do que a reforma agrária encabrestada pelos agentes da mediação. Querem uma reforma agrária para as novas gerações, uma reforma que reconheça a ampliação histórica de suas necessidades sociais, que os reconheça não apenas como trabalhadores, mas como pessoas com direito à contrapartida de seu trabalho, aos frutos de seu trabalho. Querem, portanto, mudanças sociais que os reconheçam como membros integrantes da sociedade.
O Movimento dos sem-terra, apesar de todas as dificuldades vividas, principalmente nos embates com o poder dominante, com a mídia e com setores políticos conservadores, firma-se no cenário político brasileiro nos anos 90. Em 1995, no seu terceiro Congresso Nacional, o MST reelabora os seus objetivos gerais:
Construir uma sociedade sem exploradores e onde o trabalho tem supremacia sobre o capital; 2- A terra é um bem de todos. E deve estar a serviço de toda a sociedade; 3- Garantir trabalho a todos, com justa distribuição da terra, da renda e das riquezas; 4- Buscar permanentemente a justiça social e a igualdade de direitos econômicos, políticos, sociais e culturais; 5- Difundir os valores humanistas e socialistas nas relações sociais; 6- Combater todas as formas de discriminação social e buscar a participação igualitária da mulher (MST, 1995).
Observa-se que, seguindo a tendência dos movimentos sociais nos anos 90, o MST demonstra preocupação com temas relacionados a cultura, gênero, valores e trabalho. Busca, também, ampliar sua atuação, afirmando que a terra deve estar a serviço de toda a sociedade. Após vinte anos de luta, o Movimento está organizado em 23 estados da Federação, reunindo 1,5 milhão de pessoas, com 350 mil famílias assentadas e cerca de 100 mil famílias vivendo em acampamentos.
1.2 Gestação e Nascimento do MST no Estado do Espírito Santo
De acordo com estudos realizados por Fernandes (2000), no Espírito Santo, o MST nasceu em 1985 e seu processo de gestação começou em 1983. Foi nesse ano que aconteceram as primeiras reuniões e encontros com grupos de famílias sem-terra na favela do Pé Sujo (dizem que este nome surgiu por causa da rua de terra que nos dias de chuva virava um lamaçal), na periferia da cidade de São Mateus, no litoral Norte Espírito-santense.
Essas famílias foram expropriadas e expulsas pelos grandes projetos agroindustriais, principalmente, eucalipto e cana-de-açúcar, por meio de incentivos fiscais e financeiros que ocorreram desde meados da década de 1960. As reuniões para discussão das realidades dessas famílias eram parte dos trabalhos das Comunidades Eclesiais de Base, que recebiam orientação e apoio da Comissão Pastoral da Terra e do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de São Mateus. No que diz respeito ao processo de construção e consolidação do MST no Espírito Santo, Pizetta (1999, p. 100), afirma:
Nota-se, [portanto no trabalho desses grupos] uma confluência de esforços no sentido de articular os trabalhadores excluídos, explorados, tendo como metodologia pedagógica o trabalho de base, os grupos de comunidade, os círculos bíblicos, os grupos de oposição sindical, os quais, em muitos momentos, acabavam se transformando em grupos de sem-terra, cuja discussão central era a necessidade de possuir a terra para viver e trabalhar, visto que muitas das terras da região não estavam sendo utilizadas. Aí, as leituras bíblicas e as comparações com a realidade que vivia incentivavam a luta pela terra.
Nesse mesmo ano, em diversos municípios da região, outros grupos de famílias começaram a se organizar com o objetivo de negociar terra e trabalho com os governos municipal e estadual.
Segundo dados do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA), a organização do Movimento Sem Terra no Estado do Espírito Santo, assim como no Brasil, remete às Comunidades Eclesiais de Base e à Comissão Pastoral da Terra, com significativo impulso a partir da década de 1970, auge da Ditadura Militar. Os trabalhadores rurais sem-terra e agricultores de renda familiar organizaram-se para partilhar problemas e encaminhar possíveis lutas pela conquista de condições dignas de vida, de cidadania. Ainda durante o Regime Militar, as CEBs se constituíam em lugar-espaço onde o povo simples e pobre conseguia partilhar suas angústias, problemas e esperanças individuais e coletivas.
Inspiradas nos ideais da Teologia da Libertação (TdL), as CEBs se constituíram em um espaço de conscientização sobre a realidade de exploração a que estava submetida grande parte da população. As CEBs desenvolveram uma pedagogia fundamentada no método VER, JULGAR e AGIR que à luz da palavra de Deus buscava compreender a realidade de opressão a que estavam submetidos e ao mesmo tempo transformar esta realidade. O livro do Êxodo, que descreve a luta do povo Hebreu em busca da terra prometida, servia de exemplo e referência para a situação de injustiças a que estavam submetidos os trabalhadores sem-terra. Segundo Fernandes (2000 p. 120):
As CEBs tornaram-se lugares de reflexão, o espaço de socialização política, onde o objetivo do trabalho pastoral era a conscientização acerca da realidade dos participantes. Esses lugares são transformados em lugares de liberdade, uma vez que ali podia falar, ouvir e pensar. As CEBs tornavam-se um espaço da socialização política, onde as famílias se reuniam para se conhecer e pensar seu papel na sociedade.
Partindo da perspectiva do MST, as lutas pela terra no Estado do Espírito Santo, as análises feitas por Pizzeta (1999), podem ser agrupadas em cinco períodos fundamentais, a saber: primeiro período (a terra negociada – 1983 a 1984); segundo período (esgotamento da estratégia anterior e implantação do MST/ES -1985 a 1988); terceiro período (imprevisto: conflito, repressão e refluxo – 1989 a 1991); quarto período (resistindo à violência: novos aliados\novas lutas-1992 a 1994); quinto período (consolidação e expansão do MST – a partir de 1995). Os trabalhadores rurais sem-terra organizaram o MST no Espírito Santo, em 1983, em São Mateus. O primeiro assentamento ocorreu no município de Jaguaré-ES, em 13 de setembro de 1983. Ficou conhecido como Assentamento Córrego de Areia, beneficiando um total de 31 famílias de trabalhadores rurais desempregados em São Mateus. Ainda em dezembro de 1984, fruto desse mesmo processo, o segundo grupo de sem-terra, composto de dez famílias, foi instalado em Jaguaré, num local próximo à comunidade de São Roque, razão pela qual foi denominado Assentamento São Roque.
Durante algum tempo, a negociação foi a estratégia encontrada por esses grupos de trabalhadores na luta pela terra. De acordo com os estudos realizados por Pizzeta (1999) a partir de 1985, percebe-se o esgotamento dessa estratégia de luta. Além disso, a participação de uma delegação de trabalhadores rurais capixabas no I Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, realizado em janeiro de 1985, em Curitiba, onde se definiu a ocupação como a principal forma de luta e pressão, trouxe para o Estado a disposição de fundar o MST e de rever as estratégias de enfretamento. Assim, em 27 de maio de 1985, realizou-se a primeira ocupação do MST no Estado, ocasião em que 300 famílias provenientes de diversos municípios do norte do Estado do Espírito Santo ocuparam a fazenda Georgina, no interior do município de São Mateus.
Essa ocupação, segundo Fernandes (2000 p. 140),
Marcou o nascimento do MST no Espírito Santo e diferenciava-se das anteriores por sua forma de organização e seus objetivos. Aqueles trabalhadores não estavam dispostos apenas a lutar por aquela terra. Compreendiam que essa luta significava a construção do Movimento que levaria a luta para outras terras, territorializando o Movimento para outras regiões do estado.
Como se pode observar, foi, a partir da socialização dos problemas, das esperanças e das reivindicações, principalmente a luta pela terra que transformou esses indivíduos que antes faziam parte do contingente de desempregados e excluídos da sociedade, sem direitos, sem dignidade, em uma coletividade organizada com uma identidade própria que passou a ser denominada de sem-terra. Segundo Caldart (2000 p. 79):
[...] Trata-se da marca da escolha das pessoas de reagir à sua condição de sem terra lutando pela terra, e de passar a perceber um problema que parecia de cada trabalhador, ou no máximo de cada família como um problema coletivo, e com alternativas de solução também coletivas. A grande diferença, entre um trabalhador sem-terra e um trabalhador sem-terra ligado ao MST, é que o primeiro não consta do ponto de vista social e político. A sua miséria ou o seu desenraizamento são problemas dele, ou no máximo são vistos como um problema social por outras pessoas ou por outros sujeitos, que podem decidir, ou não, ajudá-lo a sair desta sua condição desumana.
Concordamos com Caldart (2000) quando afirma que a pessoa que se integra a um movimento social e luta pelo seu direito a ser um trabalhador da terra, e sobreviver dignamente deste trabalho, passa a fazer diferença, a entrar nas estatísticas, na sociedade, passa a ter um rosto, uma identidade. Pode apanhar da polícia, pode ser despejado das terras que ocupa, pode ser considerado um desordeiro, mas existe socialmente, é sujeito da história e, mesmo que deixe de participar do MST, jamais será o sem-terra de antes. Abraçou de corpo e alma a sua salvação social, e isso alterou sua concepção e seu modo de ver o mundo. Segundo Valadão (1999) esse processo de enraizamento e humanização transformou a vida de pessoas que antes estavam excluídas, "sobrantes", à margem da história, em sujeitos humanos com dignidade e capacidade coletiva de construir novas relações sociais.
É nesse processo que se dá a construção de uma identidade coletiva de pertencimento a um movimento social que tem uma dimensão de humanização das pessoas como é o MST.
1.3 Estrutura Organizativa do MST
O MST, como já afirmamos, surgiu das lutas pela terra iniciadas no processo de dominação e resistência que caracteriza a nossa história brasileira. O marco de sua fundação, como movimento organizado por meio da sigla MST, no entanto, foi janeiro de 1984, no primeiro Encontro Nacional de Trabalhadores Rurais Sem Terra realizado em Cascavel - PR, do qual participaram 150 delegados. Esse encontro tinha por finalidade reunir todas as categorias de trabalhadores rurais que lutavam para obter terra para plantar. Nesse encontro o MST definiu como princípio a luta pela Reforma Agrária – "Terra para quem nela trabalha" e uma política agrícola que assegurasse aos trabalhadores do campo a possibilidade de permanecer em suas terras, já que estavam sendo expropriados e expulsos delas.
Segundo Fernandes (2000), das lutas realizadas pelas famílias sem-terra e das reflexões e estudos das histórias de movimentos camponeses precedentes, surgiram as experiências de construção da forma de organização do MST. E assim, homens, mulheres, jovens e crianças foram fazendo o Movimento. Do mesmo modo que não podemos ignorar que o MST nasceu da luta pela terra que o antecedeu, não é possível compreendê-lo na sua essência sem conhecer as lutas desenvolvidas pelas famílias sem-terra. No processo de construção de experiências nasceram as necessidades que resultaram em diversas comissões, equipes, núcleos, setores e outras formas de atividades em que se organizaram para discutir, refletir e praticar a luta pela terra em todas as suas dimensões.
A organização do MST é composta pelas seguintes instâncias:
Congresso Nacional, realizado a cada cinco anos e tem como objetivo a definição de linhas conjunturais e estratégicas; a confraternização entre os sem-terra e com a sociedade;
2- Encontro Nacional, realizado a cada dois anos para avaliar, formular e aprovar linhas políticas e os planos de trabalho dos setores de atividades;
3- Coordenação Nacional, composta por dois membros de cada estado eleitos no Encontro Nacional, por um membro do Sistema Cooperativista dos Assentados de cada estado e por dois membros dos setores de atividades que se reúnem de acordo com um planejamento anual. É responsável pelo cumprimento das deliberações do Congresso e Encontro Nacional, bem como pelas decisões tomadas pelos setores de atividades;
4- Direção Nacional, uma representação composta por um número variável de membros indicados pela Coordenação Nacional. As funções e divisão dos trabalhos dos membros da Direção Nacional são ratificadas pela Coordenação Nacional, os quais devem acompanhar e representar os estados, bem como trabalhar na organicidade do Movimento por meio de setores de atividades;
5- Encontros Estaduais, realizados anualmente para avaliar as linhas políticas, as atividades e as ações do MST. Programam atividades e elegem os membros das Coordenações Estadual e Nacional;
6- Coordenações Estaduais, compostas por membros eleitos nos Encontros Estaduais. São responsáveis pela execução das linhas políticas do MST, pelos setores de atividades e pelas ações programadas nos Encontros Estaduais;
7- Direções Estaduais, representações compostas por um número variável de membros indicados pelas coordenações estaduais. Seus membros também são responsáveis pelo acompanhamento e representação das regiões do MST nos estados, bem como pela organicidade e desenvolvimento dos setores de atividades;
8- Coordenações Regionais, compostas por membros eleitos nos encontros dos assentados, contribuem com a organização das atividades referentes às instâncias e aos setores;
9- Coordenações de Assentamentos e Acampamentos, compostas por membros eleitos pelos assentados e acampados, são responsáveis pela organicidade e desenvolvimento das atividades dos setores;
10- Na formação das instâncias de representação e de setores de atividades, nos assentamentos e nos acampamentos, com maior ou menor vinculação, foram formados grupos de base. Esses grupos são compostos por famílias, por jovens ou por grupos de trabalhos específicos: educação, formação, frente de massa, cooperação agrícola, comunicação, finanças etc., que compõem a coordenação dos assentamentos.
Em síntese, podemos afirmar fundamentados em Fernandes (2000) e Bezerra (1999), que o MST tem como forma de organização várias frentes de trabalhos ou setores que discutem entre si coletivamente a melhor forma de conduzir os trabalhos nos acampamentos e assentamentos, dentre os quais destacamos: Frente de Massa: é a responsável pelo trabalho de base e reúne os sem-terra para conscientizá-los da importância da ocupação de terras como forma de luta organizada:
1- Setor de produção dos assentamentos: cuida da organização da produção dos assentamentos resultantes de conquistas na luta pela Reforma Agrária desenvolvida pelo Movimento. Além disso, é responsável por programar espaços-tempos para estudar as formas de produção nos assentamentos, atentando na importância da preservação do solo e do meio ambiente;
2-Setor de Formação: responsável pela formação política dos militantes e agricultores trabalhadores rurais. Busca propor e planejar a realização de cursos, seminários que tenham a participação conjunta de todo o Movimento, de pessoas simpatizantes e\ou entidades que apóiam a luta pela terra;
3-Setor de Educação: responsável pela educação formal ou informal das crianças, jovens e adultos dos acampamentos e assentamentos. Esse setor está organizado em nível nacional, contando com um coletivo nacional, estadual e regional;
4-Setor de comunicação e propaganda: responsável pela divulgação do MST (encontros, mobilizações, sociedade) e pelas denúncias nos momentos de conflitos ou confrontos com a polícia.
Esse setor tem uma importância muito grande para desdemonizar a imagem negativa que a mídia em geral (tanto a televisiva como a jornalística) inventa em relação ao Movimento com intuito de macular a imagem dele perante a opinião pública e toda a sociedade. Nesse mesmo sentido, cabe a esse setor a desjudicialização do Movimento perante a sociedade. Geralmente, quando ocorrem os despejos dos acampados pela Polícia Militar, essa já vem munida da ordem de despejo ou de reintegração de posse concedida pela justiça, ou seja, os poderes dominantes constituídos se unem para impedir que os injustiçados, no caso os trabalhadores rurais, façam a justiça sair do papel e cumprir sua verdadeira vocação: estar a serviço da defesa da vida, principalmente do mais pobres e excluídos da sociedade.
5- Setor de finanças e projetos: responsável pela elaboração e acompanhamento dos projetos financeiros que dão sustentação ao Movimento;
6- Setor de saúde: responsável pela saúde nos acampamentos e assentamentos. Programa cursos voltados para a medicina e alimentação alternativas;
7- Setor de gênero: está começando a se estruturar, sua função é discutir, nos acampamentos, assentamentos e em todo o Movimento, os assuntos ligados á questão do gênero, por exemplo, a participação da mulher nas diversas instâncias do Movimento.
É essa estrutura organizativa que faz o Movimento ser diferente de outros movimentos sociais e possuir uma estrutura dinâmica e descentralizada com uma forte organização de base em nível nacional, estadual e regional. Após essa breve memória da luta pela terra em nosso país e do nascimento do MST, pode-se perguntar: que importância tem para a nossa pesquisa o reconquista dessa história? Será que cada sem-terra carrega em si (ainda que não saiba disso) a herança rebelde de Sepé Tiaraju, de Zumbi dos Palmares, dos camponeses, que lutaram em Canudos, Trombas e Formoso, Constestado, nas Ligas Camponesas, no massacre dos camponeses do Espírito Santo?
Que saberes os sem-terra estão construindo no enfretamento e na luta pela terra? O que podemos aprender com a forma como se organizam? É o sentimento de pertencimento a uma coletividade fundamental nesse processo de formação e humanização dos sem-terra? Que importância tem o MST para repensarmos uma sociedade alternativa fundada na justiça social e em processos sociais, culturais e econômicos humanizadores? É o MST um sujeito coletivo que educa e forma os sem-terra? Tem o Curso Pedagogia da Terra em sua estrutura e organização semelhanças com o MST?
1.4 Terra é mais do que terra: da luta pela terra à luta por educação
Nesta trajetória da história da luta pela terra o MST buscou democratizar a terra a fim de que a mesma exerça a sua função social, para isso lutou organizadamente e coletivamente. E foi nesta luta pela terra que o MST percebeu que terra é mais do que terra. Terra é mais do que terra em pelo menos dois sentidos: ao conquistar a terra se conquista a vida, no sentido de que para se viver é preciso trabalhar, morar, comer; e no sentido de que é após a conquista da terra que se coloca o desafio de permanecer na terra e fazê-la produzir. Portanto podemos afirmar que a preocupação do MST com a questão da educação surge a partir do momento em que percebe a necessidade de educar os sujeitos do campo para que continue a luta pela terra.
A educação surge como uma necessidade das famílias, das crianças, dos adolescentes, dos adultos, dos sujeitos que vivem e trabalham no campo como forma de garantir a luta pela Reforma Agrária e na conquista efetiva de seus direitos, de sua cultura, de sua dignidade, de sua identidade como sujeitos que fazem a história. Na origem do trabalho do MST com a educação escolar podemos identificar conforme afirma Caldart (2000) pelo menos cinco fatores: o primeiro diz respeito ao contexto social em que se insere o nascimento do MST como Movimento, como componente específico da realidade da educação em nosso país e particularmente da situação do meio rural. O mesmo modelo de desenvolvimento que gera os sem-terra também os exclui de outros direitos sociais, entre eles o de ter acesso à escola.
A maioria dos sem-terra tem um baixo nível de escolaridade e uma experiência pessoal de escola que não deseja para seus filhos: discriminação, professores despreparados, reprovação e exclusão. O segundo fator foi a preocupação das famílias sem-terra com a escolarização de seus filhos. O terceiro elemento ou circunstância que pressionou fortemente o início dos trabalhos do MST com a educação escolar foi a iniciativa das mães e professoras em levar adiante essa preocupação que aparecia nas famílias sem-terra.
Essa iniciativa incluía três dimensões principais: a organização das atividades educacionais com as crianças acampadas; a pressão exercida para mobilização das famílias e lideranças de cada acampamento e assentamento em torno da luta por escola; a preocupação das professoras com a própria articulação e formação para assumirem a tarefa de educar as crianças sem-terra de um jeito diferente. De acordo com Caldart (2000 p. 150):
Na criação das chamadas equipes de educação pode ser identificado o início da discussão do que seria depois a proposta pedagógica do MST. A equipe (de educação) surgiu por iniciativa de algumas professoras que estavam iniciando o seu trabalho nas recém-criadas escolas dos acampamentos e assentamentos, tendo necessidade de discutir sua prática com as companheiras. O que moveu o grupo (umas dez professoras) foi a certeza de que uma escola de assentamento e ligada ao MST não pode ser igual às escolas tradicionais. Ela deve ser diferente.
Nesse sentido, podemos nos indagar se o Curso Pedagogia da Terra em seus diferentes espaços-tempos-saberes dá conta de formar e preparar os professores para preservarem, valorizarem e cultivarem os valores, os saberes, a cultura e a identidade dos sujeitos que vivem trabalham e educam-se no campo. O último fator que impulsionou os trabalhos do MST com a questão da educação se trata do valor que o estudo tinha na vida das pessoas que ajudaram a organizar o MST e que se tornaram suas principais lideranças. Nessa trajetória da questão da educação no MST, Caldart (2000) afirma como referência cronológica nacional o Primeiro Encontro Nacional de Professores de Assentamento, que aconteceu em julho de 1987, no município de São Mateus, Espírito Santo, organizado pelo MST para começar a discutir uma articulação nacional do trabalho que já se desenvolvia, de forma mais ou menos espontânea, em vários estados brasileiros. O encontro nacional de 1987 representou uma mudança de eixo no processo de preocupação da escola pelos sem-terra.
Da organização mais ou menos espontânea, surgida nos estados do centro-sul do país, nasceu o Setor de Educação do MST, que passou a ser organizado com esse nome nos estados, principalmente a partir de 1988, acompanhando a nova estruturação do Movimento em setores, com elos desde a base local até as instâncias nacionais. Para Caldart (2000), a principal função do Setor de Educação seria a de articular e potencializar as lutas e as experiências educacionais já existentes e, ao mesmo tempo, desencadear a organização do trabalho onde ele não havia surgido de forma espontânea, ou nos assentamentos e acampamentos que fossem iniciados a partir daquele momento. Foi com a participação dos coletivos municipal, estadual que o Coletivo Nacional de Educação em 1990 chegou à conclusão de que devia ser elaborada por escrito uma proposta de educação do MST.
Com base nas discussões acumuladas até aquele momento, chegou-se à conclusão de que apenas o relato oral não dava conta de sistematizar uma reflexão que ajudasse os educadores a pensar a própria prática. O desafio era duplo: avançar na elaboração da proposta e simultaneamente traduzi-la numa linguagem que fosse acessível ao conjunto do Movimento, em especial aos professores e militantes. Desse modo, o primeiro texto escrito, O que queremos com as escolas dos assentamentos, passou por cinco ou seis versões antes de ser editado sob a forma de cartilha, em meados de 1991. O conjunto de materiais escritos pelo Movimento que se seguiram a esse primeiro texto teve um processo semelhante.
De acordo com os estudos realizados por Caldart (2000) na produção inicial dos princípios da educação do MST, podem ser identificadas três fontes principais: a experiência dos sujeitos que estavam diretamente envolvidos com o trabalho de educação nos assentamentos e acampamentos; o próprio Movimento por meio de seus objetivos, princípios e aprendizados coletivos e alguns elementos de teoria pedagógica presentes na prática de algumas professoras e pedagogos que começaram a ajudar na sistematização da proposta educativa do Movimento. Destaca-se, nesse sentido, a ênfase no estudo de Paulo Freire e também de alguns pensadores e pedagogos socialistas: Krupskaya, Pistrak, Makarenko e José Martí, dos quais os dois últimos já eram estudados há mais tempo dentro do MST, pelas contribuições que traziam a outros setores de atuação do Movimento.
Podemos afirmar, como tentativa de síntese, que o eixo fundamental da elaboração da proposta educativa do MST desde o início foi e continua sendo a prática dos sujeitos sem-terra e a construção de processos educativos ligados à realidade desses sujeitos que vivem e trabalham no campo. É importante situarmos esse processo coletivo de construção da proposta educativa do MST e percebermos como o Curso Pedagogia da Terra vai trazer em sua estrutura organizativa muito dessas dimensões propostas pelo Movimento; tais como a preocupação de que a formação dos professores para atuarem nas escolas do campo deve ser diferenciada para respeitar a realidade dos sujeitos que vivem e trabalham no meio rural; a vinculação da educação com os processos sociais, políticos e econômicos; a necessária relação entre teoria e prática e educação para a transformação da realidade social.
quinta-feira, 19 de julho de 2007
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