CAPÍTULO II
A EDUCAÇÃO DO CAMPO NO CONTEXTO DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA
"Ser educador do MST é ter o compromisso de desenvolver uma nova pedagogia, a pedagogia que liberta, a pedagogia que faz e que ajuda na transformação social".
Neste segundo capítulo, buscaremos traçar, em linhas gerais, sem a intenção de aprofundar ou mesmo esgotar, o complexo e contraditório processo histórico da educação brasileira para que melhor possamos entender o contexto em que se insere a educação do campo. Nosso objetivo consistirá em analisar a luta de setores da sociedade civil, movimentos estudantis, intelectuais, educadores, organismos e instituições em prol de uma educação comprometida com os valores, a cultura e a identidade dos sujeitos do campo.
Historicamente a educação foi privilégio de uma elite e esteve a seu serviço, mas é preciso ver (e só se vê bem com a mente e o coração) e interpretar o movimento contraditório da própria realidade, percebendo nela a luta e os embates que se travaram em defesa de uma educação de qualidade para todos. Constatamos que, durante os primeiros séculos da época colonial, os jesuítas eram os únicos educadores do país. E, preocupados com a difusão da fé e com a educação de uma elite, foram responsáveis por terem criado um sistema educacional que, em última análise, fornecia à classe dominante, representada principalmente pelos senhores de engenho, uma educação humanista idêntica ao ideal europeu da época.
Segundo Romanelli (1998 p.33):
As condições objetivas que, portanto favoreceram essa ação educativa foram, de um lado, a organização social e, de outro, o conteúdo cultural que foi transportado para a Colônia, através da formação mesma dos padres da Companhia de Jesus. A primeira condição consistia na predominância de uma minoria de donos de terra e senhores de engenho sobre uma massa de agregados e escravos. Apenas àqueles cabia o direito à educação e, mesmo assim, em número restrito, porquanto estavam excluídos dessa minoria as mulheres e os filhos primogênitos, aos quais se reservava a direção futura dos negócios paternos. Era, portanto, a um limitado grupo de pessoas pertencentes à classe dominante que estava destinada a educação escolarizada.
A vinda da Família Real portuguesa para o Brasil em 1808 teve, como conseqüência, no campo cultural, a criação de escolas superiores e a preocupação com o desenvolvimento do ensino destinado ao aprimoramento da cultura das elites em geral. Mesmo assim, esse aprimoramento já vinha com atraso ao Brasil. A Independência do Brasil é um marco importante nessa segunda fase. Após a sua proclamação, uma das primeiras preocupações da Assembléia Legislativa Constituinte fora a tentativa de legislar sobre a educação. Conforme análises feitas por Speyer (1983), após seis meses de conturbado funcionamento, a Comissão de Instrução Pública produziu dois projetos de lei referentes à educação pública: o projeto do Tratado de Educação para a Mocidade Brasileira e o projeto de Criação de Universidade.
Depois de inúmeras propostas em favor da educação popular, a nova Comissão de Instrução apresentou à Câmera dos Deputados, em 1827, um projeto de lei que propunha a criação de escolas primárias. No final do mesmo ano, em 15 de outubro, foi sancionada a primeira Lei sobre a instrução pública nacional, que foi o Decreto das Escolas das Primeiras Letras. De acordo com os estudos realizados por Romanelli (1998), marco significativo nessa caminhada de decretos, reformas e legislação é o parecer-substitutivo de Rui Barbosa em 1882, que aponta a miséria absoluta em que se encontra o ensino popular.
Esse parecer, apresentado à Assembléia Geral, em nome da Comissão de Instrução que estudou a reforma Leôncio de Carvalho, embora não tenha provocado ação conseqüente, é um marco de destaque no panorama educacional brasileiro. O resultado de sua apresentação foi inexpressivo no que se refere a ação, mas teve o mérito de elaborar diagnóstico exaustivo e realista da situação educacional, apresentando três teses básicas que perduram até os dias de hoje: a necessidade da interferência federal em favor do ensino elementar universal e obrigatório; a necessidade de uma política nacional de educação; a necessidade de criação de fundos para o financiamento das atividades educativas. A Constituição da República de 1891, que institui o sistema federativo de governo, consagrou o sistema dualista de ensino que se vinha mantendo desde o tempo do Império. Era de fato, a nova oficialização da distinção entre a educação da classe dominante (escolas secundárias acadêmicas e escolas superiores) e a educação do povo (escolas primárias e escolas profissionais).
A realidade educacional refletia diretamente a brutal desigualdade da organização da sociedade brasileira. O quadro político da República Velha se altera com a Primeira Guerra Mundial. As modificações provocadas pela Primeira Guerra Mundial na vida do país favoreceram o surgimento de novas discussões dos problemas educacionais brasileiros. Na década de 20, aparecem os primeiros educadores que introduziram idéias da escola renovada, estimulando preocupações com a qualidade do ensino. A origem de todos os nossos problemas é atribuída à precária situação do ensino no país e iniciam-se as primeiras campanhas contra o analfabetismo. De acordo com Ribeiro (1998, p.99), o modelo de escolarização que estava sendo assinalado era o da Escola Nova:
O entusiasmo pela educação e o otimismo pedagógico, que tão bem caracterizam a década dos anos 20, começaram por ser, no decênio anterior, uma atitude que se desenvolveu nas correntes de idéias e movimentos político-sociais e que consistia em atribuir importância cada vez maior ao tema da instrução, nos diversos níveis e tipos.
É essa inclusão sistemática dos assuntos educacionais nos programas de diferentes organizações que dará origem àquilo que na década de 20 está sendo denominado de entusiasmo pela educação e otimismo pedagógico.
O ano de 1922 reúne eventos significativos que assinalam o princípio de uma nova conjuntura que virá eclodir apenas com a Revolução de 30. Foram programados e realizados vários congressos e conferências nos quais eram debatidos os princípios fundamentais que deveriam orientar a educação nacional. E, nesses debates, duas orientações se conflitavam: uma era já tradicional, representada pelos educadores católicos, que defendiam a educação subordinada à doutrina religiosa (católica), a educação em separado e, portanto, diferenciada para os sexos masculino e feminino, o ensino particular, a responsabilidade da família quanto à educação etc.
A outra era representada pelos educadores influenciados pelas "idéias novas" os quais defendiam a laicidade, a co-educação, a gratuidade, a responsabilidade pública em educação. A escola pública, gratuita e leiga era vista pelos educadores como a situação ideal, justamente com vistas ao atendimento das aspirações individuais e sociais, o que equivale ao contrário de qualquer imposição orientadora, quer seja de ordem religiosa, quer seja de ordem política.
A partir da Revolução de 1930 se intensificou a participação do governo central em todos os níveis do sistema escolar. A concentração demográfica que se deu em decorrência das transformações sociais e econômicas por que passava o país, levou a uma crescente concentração de renda no setor industrial. Desta resultou a concentração das unidades escolares nos centros de maior densidade demográfica.
A escolarização urbana passou a fazer parte desse ideário como suporte para a industrialização, e, a priori, o processo escolar rural permaneceu inalterado, o qual segundo Maia (1982, p. 28):
Comprometido com a manutenção do "status-quo", contribui para uma percepção viesada da contradição cidade-campo como algo "natural", concorrendo conseqüentemente para sua perpetuação. Ao que parece, a grande "missão" do professor rural seria a de demonstrar as "excelências" da vida no campo, convencendo o homem a permanecer marginalizado dos benefícios da civilização urbana.
As proposições getulistas do Estado Novo de certa forma mantiveram a tradição dual da escola brasileira, garantindo a obrigatoriedade do ensino gratuito, porém dando ênfase ao trabalho manual nas escolas primárias e secundárias e ao desenvolvimento de uma política educacional voltada para o ensino vocacional urbano destinado especialmente às classes populares.
Com base num processo de industrialização amplo, Getúlio, por meio de seu ministro Gustavo Capanema, estipulou primeiramente uma escolaridade voltada para a capacitação profissional, mediante as novas exigências do mercado de trabalho. Fica reafirmada aqui a discriminação e a dualidade do processo educacional brasileiro. A reforma Capanema, iniciada em 1942, vigorou até a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional em 1961.
2.1 A LUTA POR UMA EDUCAÇÃO POPULAR: ANTECEDENTES DA LUTA POR UMA EDUCAÇÃO DO CAMPO
Durante o Governo Vargas, o Estado assumiu mais ativamente a tarefa de propulsor do desenvolvimento, assentando as bases para a implantação da indústria pesada. No entanto, foi no Governo de Kubitschek que o processo de internacionalização de nossa economia se intensificou com a política do desenvolvimentismo e do incentivo à industrialização. Com isso, no transcorrer do governo de Juscelino, há uma tentativa de conciliar o modelo político - nacional-desenvolvimentista - com o modelo econômico – substituição de importações em sua segunda fase, agora contando basicamente com a participação do capital estrangeiro.
Assim, os anos de 1956 a 1961 constituíram o período "áureo" do desenvolvimento econômico, aumentando as possibilidades de emprego, mas concentrando os lucros marcadamente em setores minoritários internos e, mais que tudo, externos. Como se vê, a partir da segunda metade do século XX, o Brasil, experimenta um aumento no seu parque industrial e a saída do homem do campo para as cidades. As mudanças introduzidas nas relações de produção e, sobretudo, a concentração mais ampla da população em centros urbanos tornaram imperiosa a necessidade de se eliminar o analfabetismo e dar um mínimo de qualificação para o trabalho a um número maior de pessoas.
Com base nos estudos realizados por Romanelli (1998), podemos afirmar que o capitalismo, notadamente o capitalismo industrial, engendra a necessidade de fornecer conhecimentos a camadas cada vez mais numerosas, seja pelas exigências da própria produção, seja pelas necessidades de consumo que essa produção acarreta. Se de um lado o acesso à leitura e à escrita representava uma forma de sobrevivência e expansão do próprio sistema capitalista, contraditoriamente, ou ao mesmo tempo, representava a possibilidade de emancipação das massas oprimidas.
Para Leite (2002), as discussões sobre a educação, acontecidas na década de 1930, adiantaram as proposições que surgiram em meados da década de 1940, pois, terminada a II Guerra Mundial e, em conformidade com a política externa norte-americana de Educação das Populações Rurais, pois tiveram como objetivo a implantação de projetos educacionais na zona rural e o desenvolvimento das comunidades campesinas: mediante a criação de Centros de Treinamento (para professores especializados que repassariam as informações técnicas aos camponeses), a realização de Semanas Ruralistas (debates, seminários, encontros, dia-de-campo), e também a criação e implementação dos chamados Clubes Agrícolas e dos Conselhos Comunitários Rurais. Assim, de acordo com Leite (2002), o objetivo imediato da Extensão Rural foi o combate à carência, à subnutrição e às doenças, bem como à ignorância e a outros fatores negativos dos grupos empobrecidos no Brasil, principalmente aqueles que integravam as sociedades rurais, classificadas como desprovidas de valores, de sistematização de trabalho ou mesmo de capacidade para tarefas socialmente significativas.
Os princípios teóricos que sustentavam o Programa de Extensão Rural primavam pela organização comunitária dos sujeitos do campo. Embora o campo tenha ampliado e melhorado seu nível de vida, as condições de dependência político-ideológica foram reforçadas, e a vivência democrática e cidadã ficou mais uma vez submetida à vontade dos grupos dominantes.
2.2 A CAMPANHA NACIONAL DE EDUCAÇÃO RURAL (CNER)
Como vimos anteriormente, se de um lado o acesso à leitura e à escrita representava uma forma de sobrevivência do próprio sistema capitalista, contraditoriamente, ou concomitantemente, representava a possibilidade de emancipação das massas oprimidas. Nesse contexto é que situamos a Campanha Nacional de Educação Rural. A partir dos estudos realizados por Paiva (1987), podemos afirmar que a CNER nasceu em 1952, depois da realização da experiência de Itaperuna.
Por meio das Missões Rurais, a Campanha deveria promover entre as populações do campo a consciência do valor da entreajuda para que os problemas locais pudessem ser resolvidos, e seu trabalho se consolidava e institucionalizava por intermédio da criação de Centros Sociais de Comunidade. A CNER tinha como objetivo contribuir para acelerar o processo evolutivo do homem rural, nele despertando o espírito comunitário, a idéia de valor humano e o sentido de suficiência e responsabilidade para que não se acentuassem as diferenças entre a cidade e o campo em detrimento do meio rural onde tenderiam a enraizar-se a estagnação das técnicas de trabalho, a disseminação de endemias, a consolidação do analfabetismo, a subalimentação e o incentivo às superstições e crendices.
Ainda de acordo com Paiva (1987), as atividades da Campanha Nacional de Educação Rural tinham dois pontos básicos de apoio: as Missões Rurais, cuja metodologia derivava da experiência de Itaperuna, e os Centros de Treinamento (destinados aos professores leigos, à preparação dos filhos de agricultores para as atividades agrárias e à preparação de técnicos em audiovisuais aplicados à educação de base). A CNER desenvolveu suas atividades entre 1952 e 1963, quando foi extinta com as demais campanhas do MEC, chegando a atuar em numerosos Estados do país (principalmente no Nordeste) e a manter 18 Missões em funcionamento que logo após foram desativadas. Centrada na ideologia do desenvolvimento comunitário, a modernização do campo nada mais foi do que a internacionalização da economia brasileira aos interesses monopolista e capitalista, e a CNER, ao realizar seu trabalho educativo, desconsiderou a realidade do campesinato brasileiro em seus aspectos culturais, políticos e sociais. Além disso, as lutas ou reivindicações das minorias rurais ficaram obscurecidas, sucumbindo ante aos interesses capitalistas hegemônicos. Segundo Leite (2002), quanto à filosofia da CNER, a Campanha limitou-se a repetir fórmulas tradicionais de dominação, uma vez que ela não trouxe à tona, em suas discussões, os mecanismos verdadeiros da problemática rural.
2.3 A CAMPANHA NACIONAL DE ERRADICAÇÃO DO ANALFABETISMO (CNEA)
Para Paiva (1987), a CNEA foi criada em 1958 e pretendia ser um programa experimental destinado à educação popular em geral. Ela surgiu no momento em que se iniciava no país uma nova etapa da educação de adultos: reconhecia-se amplamente a ineficácia das Campanhas anteriores e mobilizavam-se os educadores em busca de novas soluções para o problema, com a criação do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE), um setor destinado ao estudo dos problemas de educação e ciências sociais.
A criação da Campanha já era resultado de todo um processo de busca de soluções em andamento desde finais de 1956, quando alguns educadores e economistas ligados ao governo Juscelino Kubitschek começaram a rejeitar a idéia de que o desenvolvimento econômico é que criaria condições para elevar o nível educacional. A rejeição dessa idéia implicava propor que o desenvolvimento educacional é pré-condição para o crescimento econômico; acreditar que o desenvolvimento econômico e a mudança orgânica da sociedade brasileira dependiam, principalmente, da formação do homem. De acordo com as análises feitas por Leite (2002) em relação aos problemas da educação no meio rural, as Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n. 4.024 de 21-12-61) e a Reforma do Ensino de Primeiro e Segundo Graus (Lei n. 5.692 de 11-8-71) trouxeram muito pouco. Suas virtudes estão na abertura que concederam. Deixando sob a responsabilidade dos municípios a estruturação da escola fundamental na zona rural, a Lei 4.024/61 omitiu-se quanto à escola no campo, uma vez que a maioria das prefeituras municipais do interior é desprovida de recursos humanos e, principalmente, financeiros.
Os estudos realizados por Paiva (1987) mostram que, em meados da década de 1960, o país vivenciou o início da crise do modelo desenvolvimentista através das ondas migratórias das populações carentes do meio rural para os grandes centros urbanos; do Golpe Militar de 1964, que modificou extremamente a estrutura sóciopolítica do país e cristalizou o modelo de dependência econômica do Brasil em relação aos países do bloco capitalista; da anulação dos direitos civis e da cidadania; do desenvolvimento do "milagre econômico" e da aproximação do país do Fundo Monetário Internacional (FMI). É nesse contexto que constatamos a penetração incisiva da Extensão Rural e de sua ideologia no campo. Na contramão dessa ideologia e na perspectiva de um projeto de sociedade e educação alternativo situam-se os trabalhos de Freire (1970) e Wanderley (1984), Paiva (1987). Também nesse período, surgem os movimentos de educação popular que buscaram conscientizar a população adulta para que tomasse parte ativa na vida política do país.
Paiva (1987), em sua tese "Educação Popular e Educação de Adultos", apresenta enfoques bastante pertinentes sobre a educação popular, inclusive no meio rural. A obra de Freire (1970) igualmente se concentra nas experiências de educação de adultos. Freire (1970) não buscou sistematizar nem a educação formal, nem a informal, mas, a partir da práxis dos grupos de periferias urbanas e/ou da zona rural, revolucionou a prática educativa, criando os métodos de educação popular, tendo por suporte filosófico-ideológico os valores e o universo sociolingüístico-cultural desses grupos. Dialeticamente percebido, no confronto entre escola formal/tradicional e educação informal/popular, rompeu com a dicotomia até então presente e vivenciada pela escola brasileira, na tentativa de possibilitar uma educação voltada para a solidariedade, para a práxis, em que a dimensão social, política, econômica e cultural constituísse a tessitura do processo ensino-aprendizagem. Sua proposta foi amplamente utilizada, levando-se em consideração o trabalho do Movimento de Educação de Base (MEB) e as rupturas ideológicas sociopolíticas internas acontecidas a partir de 1964 em relação à Ditadura Militar.
O Movimento de educação popular ganhou inúmeros seguidores e rapidamente se espalhou pelo país, não só como forma de resistência e/ou contestação ao processo escolar subalterno, mas também como nova metodologia de alfabetização de adultos. De certa forma fundamentadas no método de Freire (1970), várias comunidades rurais desenvolveram a "educação libertadora", geralmente com o apoio de grupos progressistas, partidos políticos e pessoas engajadas em ideologias socializantes. O enfoque principal do método de Freire (1970) é a conscientização do cidadão ante as pressões advindas do capitalismo excludente e seu papel diante das distorções histórico-sociais por ele produzidas. Objetivamente, é uma pedagogia que contraria os princípios básicos de uma escola voltada para a submissão e subserviência das classes trabalhadoras, bem como para o acatamento irrestrito aos planejamentos econômico-capitalistas.
2.4 O MOVIMENTO DE EDUCAÇÃO DE BASE (MEB)
Segundo Wanderley (1984) e Paiva (1987), os movimentos que surgiram na primeira metade da década dos anos 60 lutavam pela transformação das estruturas sociais, econômicas e políticas do país e buscavam criar a oportunidade de construção de uma sociedade justa e humana. Além disso, fortemente influídos pelo nacionalismo, pretendiam o rompimento dos laços de dependência do país com o exterior e a valorização da cultura autenticamente nacional, a cultura do povo. A perspectiva educativa desses movimentos caracteriza-se por métodos pedagógicos adequados à preparação do povo para a participação política. Esses métodos combinam a alfabetização e a educação de base com diversas formas de atuação sobre a comunidade em geral, considerando como fundamentais a preservação e a difusão da cultura popular e a conscientização da população relativamente às condições socio-econômicas e políticas do país.
Podemos destacar como principais movimentos: os Centros Populares de Cultura, os Movimentos de Cultura Popular e o Movimento de Educação de Base, os quais caracterizam-se como movimentos de contestação da ordem social vigente. Segundo os estudos realizados por Paiva (1987), podemos afirmar que o MEB aparece em 1961, ligado à CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) e ao governo da União, caracterizando-se, no ano seguinte, como movimento de cultura popular. Os primeiros passos no sentido da criação do MEB foram dados ainda antes da posse de Jânio Quadros.
Foi dirigida uma carta ao presidente eleito propondo a criação de um movimento educativo sob a responsabilidade da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Aceitando a proposta, o novo presidente da República, por meio do decreto n. 50.370, de 21 de março de 1961, determinou que o governo federal forneceria recursos para a realização de um Movimento de Educação de Base por intermédio das emissoras católicas, mediante convênios com o MEC e outros órgãos da administração federal. De acordo com Paiva (1987 p.241):
Tomando como base a idéia de que a educação deveria ser considerada como comunicação a serviço da transformação do mundo. Esta transformação, no Brasil, era necessária e urgente, e, por isso mesmo, a educação deveria ser também um processo de conscientização que tornasse possível a transformação das mentalidades e das estruturas. A partir de então defendia-se o MEB como um movimento engajado com o povo nesse trabalho de mudança social, comprometido com esse povo e nunca com qualquer tipo de estrutura social ou qualquer instituição que pretende substituir o povo.
Durante seu primeiro ano de funcionamento, o MEB tratou da organização do sistema de rádio-educação, concentrando suas atividades no Nordeste. Para Paiva (1987), as atividades do MEB tinham como unidade básica de organização o sistema composto de professores, supervisores, locutores e pessoal de apoio que se encarregavam da preparação dos programas e de sua execução através da emissora da diocese local e do contato com as classes. Progressivamente, refletem-se no movimento as transformações do pensamento cristão no Brasil e a crise atravessada pela Juventude Universitária Católica (JUC). A mobilização político-ideológica do período exercerá influência no MEB que, a partir de 1962, começa a caracterizar-se como um movimento de cultura popular e a buscar uma metodologia que fosse além da mera organização de escolas radiofônicas. De acordo com Paiva (1987), o MEB tinha como meta inicial oferecer à população rural oportunidade de alfabetização num contexto mais amplo de educação de base, buscando ajudar na promoção do homem rural e em sua preparação para as reformas básicas, tais como a reforma agrária.
Fundamentalmente visava oferecer uma educação de base que levasse o camponês a uma concepção de vida, tornando-o consciente de seus valores físicos, espirituais, morais e cívicos; um estilo de vida que guiasse seu comportamento nas esferas pessoal, familiar e social e uma mística de vida que atuasse como uma força interior que assegurasse dinamismo e entusiasmo no cumprimento dos seus deveres e no exercício de seus direitos. Os estudos realizados por Wanderley (1984) e Paiva (1987) nos permitem afirmar que, embora o MEB pretendesse responder a perguntas mais abstratas sobre a existência humana, ele também colocava entre seus objetivos oferecer respostas às questões relativas ao comportamento social, tais como o conhecimento do meio, o valor da ajuda mútua e da solidariedade, da moderação, da propriedade, da família e do trabalho: o trabalho humano e sua história, trabalho e capital, organização e nobreza do trabalho, consciência profissional e de classe e sindicalização.
À medida que o trabalho se desenvolvia e se difundiam as novas idéias sociais cristãs, os agentes do MEB começaram a ansiar por uma reinterpretação do papel, dos objetivos e dos métodos do movimento. O I Encontro de Coordenadores, realizado em dezembro de 1962, concluiu pela necessidade dessa tarefa, tomando como base a idéia de que a educação deveria ser considerada como comunicação a serviço da transformação do mundo. Nesse sentido, conforme Paiva (1987), o MEB redefine sua linha de ação engajando-se na luta pela transformação da sociedade. Aceitando o postulado de que a luta entre as classes existe no Brasil, assim como em toda sociedade onde os desequilíbrios sociais causam conflitos entre os interesses dos diversos grupos, o MEB definia sua posição nessa luta colocando-se na defesa das classes menos favorecidas. Recusava-se o papel de ser um movimento paliativo ou veículo de alienação do povo, em face da injusta situação socioeconômica do nosso país, pois considerava que, sob o aspecto cristão, salvar homens no Brasil implica criar as condições para que eles conquistem sua dignidade e humanidade; a promoção humana estava intimamente ligada à preparação para a participação na vida econômica, social e política do por meio da conscientização.
Essa conscientização não se esgotava na consciência histórica, mas se calcava sobre as próprias exigências de humanização das pessoas. O humanismo cristão assumia uma dimensão histórica e comprometia-se com a transformação social e o combate à dominação de uns homens sobre os outros.
2.5 O PROCESSO EDUCATIVO NO MEB
Conforme os estudos de Wanderley (1984), o processo educativo no MEB girava em torno de noções fundamentais, tais como: pessoa, ação humana, homem como agente de criação de cultura, comunicação entre os homens, trabalho revelador do sentido do homem e de sua transcendência sobre o mundo, criatura humana feita à imagem e semelhança de Deus, mudança de atitudes, capacitação das comunidades, conscientização e animação popular.
a educação de base sintetiza dois aspectos: um engajamento real, uma resposta às necessidades concretas de humanização, aqui e agora; a universalidade de seus fundamentos, para que, enquanto se personaliza na História, o homem possa sempre afirmar seu sentido transcendente (Idem, ibidem, p.109).
Considerando a formação integral e total do homem, entende-se como educação de base o processo de autoconscientização das massas, para uma valorização plena do homem e uma consciência crítica da realidade. Uma educação que parte da realidade dos oprimidos, integrada em uma autêntica cultura popular, que leve a uma ação transformadora. Os objetivos do MEB se concretizam em conscientização, mudança de atitudes e capacitação das comunidades. Nesse sentido, destaca-se o método de educação proposto por Freire (1975 p.107):
Mas como realizar esta educação? Como proporcionar ao homem meios de superar suas atitudes, mágicas ou ingênuas, diante de sua realidade? Como ajudá-lo a criar, se analfabeto, sua montagem de sinais gráficos? Como ajudá-lo a inserir-se? A resposta nos parecia estar: num método ativo, dialogal, crítico e criticizador; na modificação do conteúdo programático da educação; no uso de técnicas como o da Redução e da Codificação.
Ao antidiálogo, Freire (1970) opõe o diálogo, como método para conseguir o que era pretendido. Para que se procedesse à mudança do conteúdo, necessário se fez, como primeira fase de elaboração e execução prática do método, o levantamento do universo vocabular dos grupos; como segunda fase, a escolha das palavras geradoras selecionadas no universo vocabular pesquisado; como terceira etapa, a criação de situações existenciais típicas do grupo; como quarta fase, a elaboração de fichas-roteiro que auxiliassem os coordenadores e, como quinta etapa, a feitura de fichas com decomposição das famílias fonêmicas correspondentes aos vocábulos geradores. Para o MEB, a conscientização ocorre quando os educandos tomam consciência de seus valores, da significação vivencial de seu trabalho de Homem no mundo. O Movimento de Educação de Base entende que a conscientização é intrínseca à própria educação, pois ela significa ajudar alguém a tomar consciência do que é (consciência de si), do que são os outros (consciência da alteridade) e do que é o mundo (coisa intencionada), que são os três fundamentos de toda educação integral. A mudança de atitudes está intimamente relacionada à conscientização, representa disposição para a ação consciente e livre, a partir da compreensão e da crítica das situações concretas.
A mudança de atitude se expressa na autocrítica, na valorização de si e do outro, na mudança e na cooperação. A capacitação representa informação e habilitação a respeito de capacidade de análise, de produção e de organização. Para Wanderley (1984), o método educativo proposto pelo MEB se fundamenta nas seguintes ações: ler, escrever e interpretar textos com situações e vocabulário próprio de lavradores; distinguir e identificar as principais relações que existem entre as instituições e estruturas sociais, econômicas, políticas e religiosas mais importantes e suas principais tendências; as técnicas de produção são classificadas em saber: utilizar os procedimentos básicos de higiene e saúde; utilizar as operações matemáticas necessárias às suas relações de produção e consumo; utilizar a legislação e os costumes referentes a sua realidade; dinamizar as potencialidades econômicas da comunidade onde vive, e, por último, os elementos de organização são classificados em conhecer as técnicas de trabalho em grupo; conhecer a legislação básica sobre associações e saber fundar e dinamizar clubes, sindicatos e cooperativas.
Ao tratar da autoconscientização, consciência crítica da realidade, partindo das necessidades e dos meios populares de libertação, integrados na cultura popular, reconhecia-se a existência prévia de um conhecimento popular que deveria ser desenvolvido, transformado, com a ajuda dos agentes do MEB. O MEB tinha clareza de que o conhecimento é uma forma de poder e de que elevar o conhecimento do trabalhador rural seria a alavanca propulsora de outras práticas sociais dos educandos. A prática educativa do MEB questionava o poder dominante na sociedade e fornecia elementos mínimos para que os educandos populares descobrissem os próprios meios e caminhos de aprimorar o conhecimento adquirido a fim de transformar a realidade em que viviam e a do país. A relação entre teoria e prática constitui um dos componentes fundamentais do processo educativo do MEB. Ela se manifesta na prática educativa dos educandos e dos monitores das comunidades.
Vinculando-se à prática dos educandos, numa atitude de escuta e aprendizado, o educador recria a teoria partindo da prática, redimensionando os seus conceitos tendo por base as exigências do trabalho, questionando a realidade concreta em que vivem os trabalhadores e o real estágio de sua consciência de classe; enfim, passa a acreditar que o próprio povo é capaz de, à sua maneira, elaborar a teoria que nasce da prática e assim traçar o rumo de sua ação. Que relação há entre o MEB e o Curso Pedagogia da Terra? Em que sentido a metodologia utilizada pelo MEB pode ser importante para pensarmos e analisarmos o Curso Pedagogia da Terra? Tem o MEB dimensões educativas que se fazem presentes no Curso Pedagogia da Terra e contribuem para o fortalecimento da educação do campo? Como veremos no último capítulo deste trabalho, o Curso Pedagogia da Terra traz em seus diferentes espaços-tempos-saberes mobiliza diversos componentes educativos presentes no MEB. Assim como o MEB tinha por um dos seus objetivos oferecer à população rural oportunidade de alfabetização, buscando ajudar na promoção do homem rural e em sua preparação para as reformas básicas, tais como a Reforma Agrária, o Curso Pedagogia da Terra/ES vem atender a uma demanda de assegurar profissionais com formação e titulação adequadas às características e aos desafios da realidade do campo, para atuarem na escolarização da educação infantil até o ensino médio nas áreas de assentamentos rurais. A qualificação de educadores traz também o sentido de suprir uma deficiência histórica no meio rural, possibilitando o acesso ao ensino superior aos jovens do campo. Podemos estabelecer relação entre o MEB e o Curso Pedagogia da Terra/ES também nos aspectos social e político. O MEB como movimento educativo engajou-se na luta pela transformação da sociedade e definiu sua luta colocando-se a serviço da defesa das classes menos favorecidas; também o Curso Pedagogia da Terra/ES, em seu processo educativo, busca aliar a formação técnica ao compromisso político de transformação das estruturas sociais injustas, em especial a luta pela reforma agrária, marca histórica do MST. A dimensão política da formação do professor sem-terra se manifesta no conjunto da organização do Curso e em seus diferentes espaços-tempos-saberes. O MEB tinha uma concepção de educação que partia da realidade dos oprimidos, integrada em uma autêntica cultura popular e a transformação da realidade. O MEB buscou em Freire (1970) um dos seus teóricos mais importantes no sentido de valorização dos saberes e da cultura popular.
Que contribuições têm o pensamento de Paulo Freire para pensarmos a educação do campo e como ele se faz presente no Curso Pedagogia da Terra/ES? Como veremos no último capítulo da dissertação, os princípios da educação defendidos por Freire se fazem presentes em todos os espaços-tempos-saberes formativos do Curso Pedagogia da Terra/ES, desde a participação dos alunos que se dá por meio da prática da gestão compartilhada nas decisões do Curso, até a participação do corpo docente que é selecionado com base em alguns critérios, como qualificação profissional, domínio de conteúdos, experiência com movimentos sociais e afinidade com a metodologia freiriana e fundamentalmente pela valorização dos saberes e da experiência dos alunos que fazem o Curso. Os professores buscam partir da realidade dos alunos, interagindo, dialogando, compartilhando e construindo coletivamente o conhecimento. A problematização do conhecimento e sua importância como instrumento a serviço da transformação da realidade, da reconquista dos valores e da identidade dos sujeitos que vivem e trabalham no campo são fundamentais nesse processo.
Se para o MEB a relação teoria e prática é um dos componentes fundamentais no processo educativo, manifestando-se na prática dos monitores e dos educandos, para o Curso Pedagogia da Terra/ES a relação entre teoria e prática é extremamente importante, constituindo um dos pilares da formação do professor sem-terra. A relação teoria-prática está presente nos espaços-tempos-saberes aula e no espaço-tempo-saber trabalho produtivo. O primeiro diz respeito à carga horária de oito horas diárias de aula que os alunos desenvolvem, contando com diferentes conteúdos das disciplinas que compõem a Grade Curricular do Curso, e o segundo, aos trabalhos práticos realizados durante uma hora, todos os dias, que podem ser: cuidado com a horta, pintura, capina, limpeza, etc.
2.6 OS CENTROS POPULARES DE CULTURA (CPC)
De acordo com os estudos realizados por Paiva (1987), os Centros Populares de Cultura, que floresceram em todo o país entre 1962 e início de 1964, tiveram como ponto de partida o Centro Popular de Cultura surgido em 1961, em íntima ligação com a União Nacional dos Estudantes (UNE). Os estudantes universitários questionaram a marginalização do artista em relação à vida política e social do país e perceberam a necessidade de atingir um novo público, mais amplo. A base de atuação do Centro Popular de Cultura da UNE era a rua e a produção de peças, e sua montagem era a sua principal atividade. Essas ações ecoavam em todo o país, por meio dos CPCs criados nos diversos Estados e a elas somavam-se as produções locais. Apesar das divergências, os diversos CPCs se uniam em torno do objetivo principal, o de contribuir para o processo de transformação da realidade brasileira, principalmente por meio de uma arte de conteúdo político. Optando pelo compromisso com as classes oprimidas, o CPC orientava sua ação fundada na tese de que toda arte exprime uma ideologia e de que os artistas conscientes deveriam produzir uma arte que atuasse como veículo de conscientização dessas classes.
Esta seria uma arte popular revolucionária; popular porque identificada com as aspirações fundamentais do povo e revolucionária porque pretendia passar o poder a esse povo. Ao conceito de arte popular revolucionária correspondia um conceito de cultura popular. Opunha-se à cultura alienada que defende a autonomia do plano cultural e protesta contra a utilização das estruturas culturais para a obtenção de fins extraculturais e à cultura desalienada que abre a luta no plano da cultura, mas cuja ação se desenvolve, unicamente, dentro dos marcos limitadores do mundo cultural. Para Paiva (1987 p. 234): "a cultura popular diria respeito à consciência que imediatamente deságua na ação política e cujo propósito último é a educação revolucionária das massas; a cultura popular era, portanto a cultura produzida pelo povo".
Como veremos no último capítulo deste trabalho, o Curso Pedagogia da Terra/ES, em seu espaço-tempo-saber mística desenvolve atividades (teatro, dança, música) buscando suscitar uma reflexão que envolve aspectos do cotidiano do curso, simultaneamente, chama nossa atenção e nos sensibiliza para uma atitude de contestação social e de luta por uma sociedade em que não haja exploradores e explorados, cujos alicerces se encontram na justiça social. Ao participarmos das aulas da disciplina de Artes que compõe a grade curricular do Curso Pedagogia da Terra/ES, observamos que a professora valorizava as expressões artísticas e culturais dos alunos, possibilitando uma releitura dos valores e da cultura desses sujeitos e de sua realidade campesina. Nesse sentido, destacamos a fala da professora Maria Aparecida que lecionou a disciplina Artes e Educação II:
Acho que vimos um pouco isso quando a gente fala da inserção da vida nos espaços do curso. A arte que eu acredito e defendo não consegue penetrar em todos os lares como a mídia consegue com essas porcarias que se apresentam enquanto produção cinematográfica, enquanto produção de novela, enquanto produção de musical, as coisas que aparecem são muito pobres; do ponto de vista de arte mesmo, como valor cultural, como possibilidade de libertação e de expressão de um homem para outro homem, de uma mulher para outra mulher, de um ser humano para outro ser humano!
A arte tem uma dimensão de recuperar a humanidade dos excluídos, daqueles sujeitos que estão à margem da sociedade, de legitimar os seus saberes e de libertá-los de todas as formas de subjugação. A arte como manifestação e recordação da memória, da história, dos valores e da identidade dos sujeitos do campo.
2.7 OS MOVIMENTOS DE CULTURA POPULAR (MCP)
Com base nos estudos realizados por Wanderley (1984), podemos afirmar que os Movimentos de Cultura Popular se originaram no Movimento de Cultura Popular de Recife, criado em maio de 1960 e ligado à prefeitura de Recife. O movimento nasceu da iniciativa de estudantes universitários, artistas e intelectuais pernambucanos que se aliaram ao esforço da prefeitura da capital no combate ao analfabetismo e elevação do nível cultural do povo, buscando aproximar a juventude e a intelectualidade do povo, sob a influência de idéias socialistas e cristãs. Para Paiva, (1987, p. 236):
O movimento pretendia encontrar uma fórmula brasileira para a prática educativa ligada às artes e à cultura do povo e suas atividades estavam voltadas, fundamentalmente, para a conscientização das massas através da alfabetização e da educação de base. Essa fórmula foi encontrada no próprio contato com as massas, a partir do qual as atividades do MCP começaram a se diversificar.
Nesse sentido, o movimento passou a atuar por meio do teatro, da organização de núcleos de cultura popular, do incentivo e divulgação das artes plásticas e artesanato, do canto, da dança e da música popular, da construção de praças, centros e parques de cultura, da organização de cine e teleclubes e de galerias de arte popular, além de atividades educativas sistemáticas destinadas à alfabetização. Pretendia-se compreender a cultura popular, interpretar e sistematizar aquilo que houvesse de mais específico e significativo na cultura do povo, valorizando a produção cultural das massas e criando condições para que o povo pudesse não somente produzir como também usufruir a própria cultura, orgulhando-se dela.
Assim como os Movimento de Cultura Popular, podemos afirmar que o Curso Pedagogia da Terra/ES possibilita a retomada e a valorização da cultura, dos valores e da identidade dos sujeitos do campo:
A gente tem uma discussão hoje muito profunda sobre qual é a cara do homem do campo. E ao longo de todo o processo capitalista neoliberal que foi imposto pra gente, o homem do campo se descaracterizou muito, nós perdemos a nossa cultura, as nossas tradições e assimilamos uma cultura externa à nossa que foi imposta a nós. O importante pra gente não é dar uma nova cara para o homem do campo e sim resgatar no homem do campo o que foi perdido realmente. Nós queremos resgatar as culturas nossas que foram perdidas, fazer um resgate de nossa cara enquanto camponês, que não é cara feia, suja, a unha cheia de terra que foi colocado pra gente. Antigamente quase todo mundo era do campo e ninguém tinha vergonha de ser do campo, então a gente tem de resgatar esse orgulho de ser da roça. Eu tenho orgulho de estar na roça capinando. Plantar uma semente pra mim é a maior dádiva que existe de poder plantar meu milho e ver meu milho crescer sem precisar usar veneno, um milagre da vida. A verdadeira cara do camponês, do caipira, do da roça é essa! (Aluna da segunda turma do Curso Pedagogia da Terra).
A valorização das formas de expressão cultural do homem do povo e o estímulo ao desenvolvimento de sua capacidade de criação funcionavam, no MCP, como a própria condição de diálogo entre a intelectualidade e o povo: partia-se da arte para chegar à análise e à crítica da realidade social. Segundo Paiva (1987), buscava-se, dessa forma, a autenticidade da cultura nacional, a valorização do homem brasileiro, a desalienação da nossa cultura; a conscientização da massa popular, a formação de uma consciência política e social que preparasse o povo para a efetiva participação na vida do país. É importante estabelecermos uma certa relação entre o MCP e o Curso Pedagogia da Terra/ES. Podemos perceber esse processo de alfabetização como algo que vai além do aprender a ler e a escrever, na valorização dos valores, da cultura e da identidade dos sujeitos do campo, por meio desta entrevista feita à professora que lecionou a disciplina Alfabetização I:
Porque eu acho que dominar a leitura e a escrita numa sociedade como a nossa, ela não é a resolução de todos os problemas, mas eu acho que se cada professor começa a partir do que trabalhamos aqui tentar construir novas práticas, veja que eu não estou tentando dar receitas, estou pensando em construir práticas de alfabetização levando em conta essas diversas realidades. Neste sentido eu achei interessante na turma o registro, as pessoas que aprendem a ler e a escrever podem registrar suas práticas. Eu acho que em qualquer lugar, se você lida com a criança do morro, do meio rural, de uma cidade pequena, se você lida com a criança do centro da cidade, quer dizer existem diferenças, culturas e práticas que não podem desaparecer em função de um modelo imposto por uma cultura e que precisam ser preservados e por isso eu tenho dito sempre que a alfabetização é uma prática social e cultural.
É interessante pensarmos que, em toda a história da educação brasileira os sujeitos do campo sempre foram marginalizados do processo de alfabetização, e que isso se situa dentro de uma lógica de dominação, de exclusão que o sistema capitalista impôs a esses sujeitos, o Curso Pedagogia da Terra/ES, ao buscar formar os professores para que sejam capazes de ensinar a ler e a escrever as crianças, os adolescentes, os jovens e os idosos, está contribuindo na construção e na luta por uma nova sociedade e por uma educação que valorize os saberes, a cultura e a identidade desses sujeitos.
Em síntese, podemos perguntar-nos que contribuições o Movimento de Educação de Base, os Centros Populares de Cultura e os Movimentos de Cultura Popular nos dão para pensarmos o processo de formação do professor sem-terra? Que relação há entre o processo educativo desenvolvido por esses movimentos e os espaços-tempos-saberes mobilizados no Curso Pedagogia da Terra? Como se dá a relação entre teoria e prática no Curso Pedagogia da Terra? Que concepção de arte está sendo construída nos diferentes espaços-tempos-saberes do Curso Pedagogia da Terra e que relação tem com o significado de arte presente nesses movimentos? Como esses movimentos nos ajudam a pensar uma educação do campo que recupere os saberes, a cultura e dignidade dos sujeitos que vivem nessa realidade?
2.8 O MOVIMENTO DE EDUCAÇÃO PROMOCIONAL DO ESPÍRITO SANTO
Apesar de ter nascido em contextos social, econômico e político diferentes do Brasil, no caso a França em 1935, e se espalhado pelo mundo a partir da década de 1960 e ter chegado ao Brasil, especificamente no Estado do Espírito Santo, na década de 1970, o MEPES pode ser inserido no contexto da luta por uma educação diferenciada para os sujeitos do campo.
Como movimento que antecede a luta por uma educação do campo, podemos afirmar que o MEPES foi um dos protagonistas que valorizou os saberes, a cultura e os sujeitos que vivem e trabalham nessa realidade. Diferentemente dos outros movimentos anteriores, o MEPES surgiu em um contexto diferenciado e com uma outra estrutura de organização e funcionamento. De acordo com Speyer (1983), o Movimento de Educação Promocional do Espírito Santo teve sua origem na escola-família ou pedagogia da alternância.
Os agricultores idealizaram um tipo de ensino para seus filhos que permitia a alternância na família e na paróquia, a fim de conciliar o trabalho agrícola com o estudo. A iniciativa foi posteriormente alterada para que o jovem permanecesse uma semana no interior e duas ou três realizasse trabalhos práticos na propriedade familiar. A experiência francesa foi reproduzida na Itália, na Espanha, no norte da África, na Argentina e no Brasil. No Brasil, as experiências localizam-se no Estado do Espírito Santo e, em geral, em regiões colonizadas por imigrantes europeus. A alternância se dá com uma semana na escola e 15 dias com a família.
Enquanto uma turma permanece na escola, em regime de internato, outras duas permanecem com as famílias, nas propriedades rurais. A metodologia utilizada, denominada "pedagogia da alternância", consiste em integrar a formação do jovem do meio rural em períodos de escola e família. Busca-se, dessa forma, conciliar a escola e a vida, não permitindo que o jovem se desligue de seu ambiente. Consiste em uma pedagogia em que se aprende mais pelas situações que se vive (ambiente educativo) do que pelas tarefas que se realizam na escola. E essa relação entre escola e ambiente familiar permite que o jovem reflita sobre o seu meio.
O MEPES utiliza alguns instrumentos pedagógicos no desenvolvimento de suas atividades educativas, entre eles podemos citar: o plano de estudo, o caderno da propriedade e os recursos pedagógicos específicos. Conforme afirma Speyer (1983), o plano de estudo consiste num guia de observação, composto de perguntas ordenadas, elaboradas pelos alunos, sobre um tema anteriormente escolhido ou programado, dentro das atividades de formação do ano escolar. As respostas são pesquisadas durante o período em que o aluno está em casa, com a participação de seus pais e de membros da comunidade. Na volta à escola, cada jovem revê e corrige sua síntese individual com a ajuda do monitor. Faz a colocação em comum, com ampla discussão das respostas pelo grupo. Outro instrumento metodológico importante é o caderno pessoal de anotações, no qual se revelam as atitudes, os gestos e a personalidade dos alunos. Ele assegura a unidade entre a escola e a família, entre os monitores e os pais. Tem valor próprio independente das áreas de ensino.
Além desses dois instrumentos metodológicos, o MEPES utiliza diversos recursos pedagógicos a fim de facilitar o relacionamento do jovem com a escola e a família: estágios técnicos em propriedades agropecuárias e hospitais; viagens de estudos a fim de conhecerem e analisarem outras realidades; visitas periódicas dos monitores às famílias; realização de festas na escola-família; participação na vida da comunidade; realização de cursos para os pais e agricultores da região; valorização da realidade rural que o cerca, como instrumento pedagógico; maior participação dos pais na vida escolar dos filhos e garantia de uma formação global por meio da reflexão sobre a experiência vivida e a própria realidade, mediante análise de várias atividades durante os períodos de alternância. Quais dimensões educativas presentes na proposta do MEPES podemos encontrar nos espaços-tempos-saberes do Curso Pedagogia da Terra/ES? Tem o Curso Pedagogia da Terra/ES, em sua metodologia, elementos que se aproximam da pedagogia da alternância?
Que instrumentos pedagógicos o Curso Pedagogia da Terra/ES utiliza no processo de formação dos professores sem-terra? Podemos identificar com base na pesquisa que realizamos no Curso Pedagogia da Terra/ES, nas entrevistas realizadas a alunos e professores, nos espaços-tempos-saberes presentes no curso, algumas dessas dimensões educativas. O Curso Pedagogia da Terra/ES vem atender a uma demanda de assegurar profissionais com formação e titulação adequadas às características e aos desafios da realidade da educação no e do campo.
O Curso Pedagogia da Terra/ES, por exemplo, está organizado em módulos, realizados em regime de alternância, dividido nos tempos educativos, períodos de aula presencial (espaço-tempo-sala de aula) e nos demais espaços-tempos-saberes formativos (atividades práticas e tempo-comunidade), com trabalhos orientados em cada disciplina, totalizando uma carga horária em torno de 2500 horas. O tempo-escola ainda está subdividido em várias outras atividades, tais como oficinas, estudos, trabalho. Nesse sentido, assim se expressa um aluno do curso:
Um dos princípios da pedagogia da alternância e que se faz presente na organização do curso pedagogia da terra é não desligar o aluno do seu meio. Então todo o trabalho, a metodologia, os conteúdos que os professores utilizam estão voltados para a realidade dos alunos, dos assentamentos. O plano de estudo, por exemplo, faz a ligação entre a realidade das famílias, dos assentamentos e da escola. Daí surge a questão do tempo escola e do tempo comunidade. O tempo escola é o tempo em que o aluno estuda a parte teórica e o tempo comunidade o aluno está em contato com a prática dos assentamentos. Os planos de estudos buscam aprofundar a realidade dos alunos e a partir daí se faz o planejamento. Matemática, por exemplo, vai trabalhar a partir da realidade das famílias dos alunos. Quando a gente está estudando as matérias sempre fazemos essa ligação com a nossa realidade e leva os professores a fazerem. O grupo ajuda os professores à estarem colocando a realidade dos movimentos em seus conteúdos. O curso é diferente porque a gente consegue colocar matérias dentro do curso que interessa à nossa realidade.
Escutando a voz dos alunos e professores do Curso Pedagogia da Terra/ES, pode-se perceber um reconhecimento positivo, por exemplo, no que se refere ao currículo do curso.
De acordo com o PRONERA (2004, p. 76), por meio do relatório geral de avaliação externa:
Há uma clara percepção das inovações pedagógicas neste campo, que engloba desde a introdução de temas ligados à realidade dos assentamentos como, por exemplo, ´Alternativas educacionais para o campo`, ´A questão agrária no Brasil`, ´Educação para o cooperativismo`, temas como arte, conjuntura sócio-econômica e política, oficinas pedagógicas, saídas a campo, trabalhos em grupos para a realização de sínteses dos conteúdos aprendidos.
Segundo depoimento de uma professora, participar de um curso como Pedagogia da Terra/ES impõe desafios teórico-práticos que emergem na própria relação com os alunos:
Eles nos ensinam um jeito especial de ser professor, em tudo que fazem. A forma como se organizam para trabalhar (...) está pautada no respeito ao outro, no direito à palavra de cada um. Mostram-nos uma maneira diferente de se posicionar frente aos desafios e problemas da vida. Revoltam-se, mas se solidarizam; calam-se, para ensinar com gestos lições simples da vida. Seu espírito de solidariedade e trabalho coletivo é imensurável, para tornar cada uma das etapas do curso mais proveitosa possível às necessidades colocadas pelo Setor de Educação do MST.
A fala de uma aluna do Curso Pedagogia da Terra/ES retrata bem essa troca de saberes e experiências, implicando um repensar a sua prática pedagógica e postura perante a vida:
Embora as condições aqui não sejam as mais favoráveis para fazermos bem o nosso curso de pedagogia, não podemos ficar parados esperando. Isso aprendemos nos acampamentos e assentamentos do MST, que a gente só conquista direitos lutando mesmo, de forma organizada, para superar nossas dificuldades. Por isso muitos, que chegam de outros contextos, se surpreendem com a nossa disciplina e força de vontade. Para nós não há nada de anormal ou fora de série. Tudo isso faz parte das nossas lutas, da nossa identidade sem-terra.
Esse confronto propicia um movimento de desconstrução e reconstrução de sentidos, vinculado a uma prática educativa permanente em todas as esferas da vida, aprendido na vivência das lutas coletivas para a superação das desigualdades sociais e o fortalecimento de uma educação voltada para as raízes, os valores, a cultura e a identidade dos sujeitos do campo.
2.9 A EDUCAÇÃO DO CAMPO EM FACE DA LEI 5.692/71 E DA LEI 9.394/96
De acordo com os estudos realizados por Leite (2002) no que diz respeito à educação, a demanda pela escolaridade aumentou significativamente na década de 1960, provocando séria crise no processo escolar brasileiro, uma vez que a sociedade (principalmente as classes médias) reclamava da escassez das escolas e do número de vagas existentes, bem como da baixa qualidade do ensino praticado em sala de aula. O ponto culminante dessas exigências deu-se em 1968, resultando na extinção da UNE (União Nacional dos Estudantes) e dos diretórios acadêmicos de várias faculdades, principais estopins dos movimentos contra a Ditadura Militar. Para Romanelli (1998, p. 196), a crise no sistema educacional brasileiro a partir da implantação do Regime Militar:
[...] Acabou por servir de justificativa para a assinatura de uma série de convênios entre MEC e seus órgãos e a Agency for International Development (AID) – para assistência técnica e cooperação financeira dessa Agência à organização do sistema educacional brasileiro. Este é, então, o período dos chamados Acordos MEC-USAID.
Na verdade, dentro dos interesses capitalistas, pretendia a AID, entre outros objetivos, a eficiência e eficácia educacional, a ampliação curricular da escola brasileira com vistas ao desenvolvimento econômico-produtivo, a modernização dos canais educacionais extraclasse, como forma de ampliação das informações a serem veiculadas, e a reestruturação do ensino superior nacional, tendo por modelo as universidades norte-americanas. A Lei 5.692/71, a partir de seus objetivos gerais e de caráter conservador, dada sua ênfase liberal, não trouxe, de fato, novidades transformadoras. Pelo contrário, acentuou as divergências sociopolíticas existentes na escolaridade do povo brasileiro e consagrou o elitismo que sempre esteve presente no processo escolar nacional. Embora sem meios adequados para alcançar seus objetivos, a LDB pretendeu eliminar a seletividade social, com a ampliação do ensino fundamental até a oitava série e a dualidade entre ensino técnico-profissional e formação propedêutica (com a criação do ensino profissionalizante obrigatório no segundo grau).
Concordamos com Leite (2002, p.47):
Tendo por objetivo o atendimento às peculiaridades regionais, a LDB teoricamente abriu espaço para a educação rural, porém restrita em seu próprio meio e sem contar com recursos humanos e materiais satisfatórios, na maioria das vezes não conseguiu atingir os objetivos preconizados pela legislação. Isso porque a Lei 5.692/71, distanciada da realidade sócio-cultural do campesinato brasileiro, não incorporou as exigências do processo escolar rural em suas orientações fundamentais nem mesmo cogitou possíveis direcionamentos para uma política educacional destinada, exclusivamente, aos grupos campesinos. A presença de projetos como o III Plano Setorial de Educação, Cultura e Desporto (PSECD) evidencia na prática o descaso do governo em relação à educação da população campesina.
Se o plano sob aspecto teórico recomendava a valorização da escola rural, o trabalho do homem do campo, a ampliação das oportunidades de renda e de manifestação cultural do rurícola, a extensão dos benefícios da previdência social e ensino ministrado de acordo com a realidade da vida campesina, contraditoriamente recomendava também um mesmo calendário escolar para toda escola rural, tendo por base o calendário urbano, e entendia a unidade escolar rural como agência de mudanças e transformações sociais. Conforme as análises realizadas por Leite (2002), na prática, em raros momentos, o plano considerou como inadequada ao projeto a formação urbana dos professores que atuavam no ensino rural, os quais demonstravam pouco interesse pelas atividades campesinas e pelos padrões socioculturais e produtivos da zona rural. Mais uma vez, a resolução dos problemas básicos que afligiam a escolaridade dos rurícolas foi omitida.
Também não foi motivo de preocupação do referido plano a presença do professor leigo, das salas multisseriadas, da inadequação do material didático e das instalações físicas da escola, na maioria das vezes em estado lastimável. Ainda segundo Leite (2002), a atual Lei de Diretrizes e Bases promove a desvinculação da escola rural dos meios e da performance escolar urbana, exigindo para a primeira um planejamento interligado à vida rural e de certo modo desurbanizado. Porém, não estão explicitamente colocados, na nova LDB 9.394/96, os princípios e as bases de uma política educacional para as populações campesinas.
Nos planos institucionais, o ensino fundamental sob a responsabilidade dos municípios, em princípio, contará com um calendário escolar próprio e "... deverá adequar-se às peculiaridades locais, inclusive climáticas e econômicas, a critério do respectivo sistema de ensino, sem com isso reduzir o número de horas letivas previsto nesta lei" (Brasil/MEC, LDB 9.393/96, art. 23) de modo que favoreça a escolaridade rural com base na sazonalidade do plantio/colheita e outras dimensões socioculturais do campo. Igualmente dispõe o artigo 28 da mesma lei sobre as adaptações necessárias da estrutura curricular às exigências das unidades escolares instaladas na zona rural, respeitando-se os dispositivos do artigo 32 e seus incisos, no que tange à organização e à estruturação do ensino fundamental. À luz dos artigos 208 e 210 da Carta Magna de 1988, e inspirada, de alguma forma, numa concepção de mundo rural como espaços específicos, diferenciados e, concomitantemente, integrado no conjunto da sociedade, a Lei 9.394/96 estabelece que:
"Art. 28. Na oferta da educação básica para a população rural, os sistemas de ensino promoverão as adaptações necessárias à sua adequação, às peculiaridades da vida rural e de cada região, especialmente: I – conteúdos curriculares e metodologias apropriadas às reais necessidades e interesses dos alunos da zona rural; II – organização escolar própria, incluindo a adequação do calendário escolar às fases do ciclo agrícola e às condições climáticas; III – adequação à natureza do trabalho na zona rural".
A nova LDB 9.394/96, ao submeter o processo de escolarização à realidade dos sujeitos do campo, institui uma nova forma de sociabilidade no âmbito da política de atendimento escolar no país. Não mais se satisfaz com a adaptação pura e simples. Reconhece a diversidade sociocultural e o direito à igualdade e à diferença, possibilitando a definição de diretrizes operacionais para a educação rural sem, no entanto, recorrer a uma lógica exclusiva e de ruptura com um projeto global de educação para o país. Importa notar que o pano de fundo da escolaridade campesina, a partir de agora, não se limita ao modelo urbano-industrial, como fora outrora nas décadas de 1960 a 1980. A sustentação dessa escolaridade encontra-se na consciência ecológica, na preservação dos valores culturais e da práxis dos sujeitos que vivem no e do campo. É nesse sentido que podemos situar a luta "Por uma Educação do Campo" , que teve início com o I Encontro Nacional de Educadoras e Educadores da Reforma Agrária (I ENERA) realizado em julho de 1997. Essa Conferência, promovida em nível nacional pelo MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra), pela CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), pela Unb (Universidade de Brasília) e outras entidades internacionais como a UNESCO, foi preparada nos estados por meio de encontros que reuniram os principais sujeitos de práticas e de preocupações relacionadas à educação do campo.
Nessa Conferência se reafirmou a convicção de que o campo existe, que está em movimento e que é legítima a luta por políticas públicas específicas e por um projeto educativo alternativo para quem nele vive. No campo estão milhões de brasileiras e brasileiros, da infância até a terceira idade, que vivem e trabalham como: pequenos agricultores, quilombolas, povos indígenas, pescadores, camponeses, assentados, reassentados, ribeirinhos, povos da floresta, caipiras, lavradores, roceiros, sem-terra, agregados, caboclos, meeiros, bóias frias entre outros. O caderno número 4 "Por Uma Educação do Campo" assim expressa:
Os povos do campo têm uma raiz cultural própria, um jeito de viver e de trabalhar, distinta do mundo urbano, e que inclui diferentes maneiras de ver e de se relacionar com o tempo, o espaço, o meio ambiente, bem como de viver e de organizar a família, a comunidade, o trabalho e a educação. Nos processos que produzem sua existência vão se produzindo como seres humanos (Seminário Nacional Por uma Educação do Campo: 2002, p. 16)
Portanto, se queremos de fato construir uma Educação do Campo, é preciso recuperar os valores, a cultura, a dignidade dos sujeitos que vivem no e do campo. Somente uma educação que esteja vinculada à sua realidade, aos seus valores, à sua cultura será capaz de recuperar os saberes, o modo de ser e de viver dos sujeitos do campo.
O número 4 da Coleção Por Uma Educação do Campo nos chama atenção para os graves problemas por que passa a educação do campo: faltam escolas para atender a todas as crianças e jovens; falta infra-estrutura nas escolas e ainda há muitos docentes sem a qualificação necessária; falta uma política de valorização do magistério; falta apoio às iniciativas de renovação pedagógica; há currículos deslocados das necessidades e das questões do campo e dos interesses dos seus sujeitos; os mais altos índices de analfabetismo estão no campo, e entre as mulheres do campo; a nova geração está sendo deseducada para viver no campo, perdendo sua identidade de raiz e seu projeto de futuro. Para enfrentar esses desafios, a luta "Por Uma Educação do Campo" está articulada a um Projeto Nacional de Educação em que se afirma que a preocupação fundamental de toda educação é o ser humano e o processo de sua humanização; é necessário e imperioso educar os sujeitos do campo para viverem no/do campo; reafirmar o direito dos sujeitos do campo à educação pública, gratuita e de qualidade, voltada aos interesses e à realidade da vida no campo.
Vincular a luta por uma educação do campo a um projeto de desenvolvimento alternativo para o povo brasileiro, quando afirmamos Por Uma Educação do Campo, estamos afirmando a necessidade de duas lutas: a ampliação do direito à educação e à escolarização no campo e a construção de uma escola que esteja no campo, mas que também seja do campo: uma escola política e pedagogicamente vinculada à história, à cultura e às causas sociais e humanas dos sujeitos do campo, e não um mero receptáculo da escola urbana. Um ganho importante nesse movimento de luta por políticas públicas de educação do campo foi a publicação em 2004 pelo MEC, do documento: Referências Para uma Política Nacional de Educação do Campo. O documento nasceu da mobilização do Seminário Nacional de Educação do Campo realizado em outubro de 2003, que teve a participação do MST, da Confederação Nacional de Trabalhadores na Agricultura, da CPT, dos Centros Familiares de Formação por Alternância e de outros movimentos engajados e comprometidos na luta por uma educação no e do campo.
segunda-feira, 14 de maio de 2007
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