CAPÍTULO III
O MOVIMENTO DE LUTA POR UMA EDUCAÇÃO DO CAMPO E AS MATRIZES
PEDAGÓGICAS DA EDUCAÇÃO DO CAMPO
"Pedagogia: arte de conduzir alguém na arte de ser gente".
Paulo Freire.
Neste terceiro capítulo, temos como objetivo fundamental identificar as matrizes pedagógicas da educação do campo, e relacioná-las com o processo de formação dos professores sem-terra. Para tanto se faz necessário recuperarmos a história coletiva da luta por uma educação do campo que começou oficialmente com a I Conferência Nacional: Por uma Educação Básica do Campo. A I Conferência Nacional: Por uma Educação Básica do Campo foi um processo de reflexão e de mobilização do povo em favor da educação que considerasse nos seus conteúdos e na metodologia, o específico do campo. Esse processo foi iniciado como consta na Coleção (números 1, 2, 3, 4 e 5) Por uma educação básica do campo, no final do I Encontro Nacional de Educadores e Educadoras da Reforma Agrária (I ENERA), promovido pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em julho de 1997, em Brasília, em parceria com diversas entidades, como a Universidade de Brasília (UnB), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). O trabalho coletivo dessas entidades e instituições partiu do pressuposto do que seria específico da educação do campo, ou seja, considerasse a cultura, as características, as necessidades e os sonhos dos que vivem no e do campo.
A proposta da Conferência teve nos seu horizonte a consecução de políticas públicas e a defesa de um projeto popular de desenvolvimento do campo. O primeiro volume da Coleção: por uma educação básica do campo traz em seu conteúdo o histórico da I Conferência Nacional: Por uma Educação Básica do Campo, as concepções e princípios pedagógicos de uma escola do campo e as conclusões a que chegaram os participantes-parceiros da Conferência. A Conferência foi organizada de forma que os participantes debateram coletivamente sobre os seguintes temas: Desenvolvimento rural e educação no Brasil: desafios e perspectivas; situação da educação rural no Brasil e na América Latina; Políticas Públicas em Educação no Brasil; Financiamento da Educação e Política Educacional para Escolas Indígenas; Em busca de um Novo Projeto de Desenvolvimento para o Brasil; Projeto Popular de Desenvolvimento para o Campo e o compromisso de ser educador e educadora do campo. O primeiro volume da Coleção: por uma educação básica do campo traz uma importante reflexão sobre os conceitos de educação básica e do campo.
No que diz respeito ao conceito de educação, o documento chama atenção para se garantir uma educação específica e diferenciada para os sujeitos do meio rural, propiciando a eles um processo de formação humana plena. Uma educação que contemple as necessidades, interesses e que cultive os valores e a identidade dos sujeitos que vivem no e do campo. Em relação ao conceito de educação básica, o documento utiliza o mesmo significado atribuído pela Lei de Diretrizes Básicas (LDB), que identifica a educação básica como um dos níveis da educação escolar (o outro é o da educação superior), formada pela educação infantil, ensino fundamental e ensino médio e que inclui também a educação de jovens e de adultos e a educação profissional, integrada, mas não necessariamente vinculada aos níveis de escolarização. Utilizando a definição dada pela LDB ao conceito de educação básica, o documento vai mais além quando chama nossa atenção para duas questões fundamentais: a escolarização não é toda a educação, mas é um direito social fundamental a ser garantido para todo o povo, seja do campo, seja da cidade; a expressão educação básica carrega em si a luta popular pela ampliação da noção de escola pública, embora a atual legislação só garanta a obrigatoriedade do ensino fundamental, já começa a ser incorporada em nossa cultural a idéia de que todos devem atingir níveis mais elevados de estudo. Outra contribuição do documento consiste na ressignificação do conceito de rural para o conceito de campo. O documento assim se expressa:
Utilizar-se-á a expressão campo, e não a mais usual meio rural, com o objetivo de incluir no processo da conferência uma reflexão sobre o sentido atual do trabalho camponês e das lutas sociais e culturais dos grupos que hoje tentam garantir a sobrevivência desse trabalho (Por Uma Educação Básica do Campo: 1999, p.26).
Nesse sentido busca fazer um resgate histórico e político do conceito de camponês, que em nossa história, aparece freqüentemente de forma depreciativa. Portanto uma educação do campo tem o dever ético de lutar contra essa falsa imagem que se construiu em relação aos sujeitos do campo.
O segundo volume da Coleção, Por uma educação básica do campo, traz publicados importantes trabalhos, entre eles um texto do professor Arroyo e outro texto do professor Fernandes. O professor Arroyo pronunciou em Luziânia, no dia 29 de julho de 1998, uma palestra, com base no que ele viveu como profissional da educação, em seus contatos com os Movimentos Sociais do Campo e de sua atenta presença no que estava acontecendo na Primeira Conferência. Partindo da constatação do processo pedagógico que os Movimentos Sociais do Campo vivem, realizam gestos concretos, mobilizações, bandeiras de luta acreditam e lutam por uma proposta de um Brasil Popular tendo como compromisso o desenvolvimento democrático do campo, das expressões culturais dos sujeitos que vivem e trabalham no e do campo, Arroyo nos ajuda a refletir sobre o significado de uma educação básica do campo em alternativa ao modelo hegemônico da escola urbana.
Nos conduz a pensar uma escola diferente que está sendo gestada pelos movimentos sociais do campo. Parte do pressuposto que de que os Movimentos Sociais são em si mesmos educativos em seu modo de se expressar, pois o fazem mais por gestos, mobilizações, realizando ações concretas, ocupações (inclusive da escola e da universidade como exemplo temos o Curso Pedagogia da Terra/ES) do que por palavras. A segunda parte do segundo volume da Coleção: por uma educação básica do campo, traz um importante trabalho do professor Fernandes intitulado: por uma educação básica do Campo, elaborado em função dos Seminários Estaduais e do texto-base da Primeira Conferência Por uma Educação Básica do Campo.
Segundo Fernandes (2000), a política vigente inferioriza o campo, vê o camponês como atrasado, não moderno e dependente do urbano. A revolução tecnológica está a serviço somente da produção patronal. Não há interesse por uma tecnologia voltada para a agricultura familiar. É o movimento social do campo que, enfrentando todas as dificuldades possíveis, luta por uma tecnologia adequada às suas necessidades. A agricultura familiar é um modelo que não só gera emprego e garante qualidade de vida, mas assegura também um desenvolvimento sustentável em harmonia com o meio ambiente. A política educacional brasileira ignora a necessidade de um projeto específico para a escola rural. Não queremos uma escola do campo ou para o campo, nem uma escola da cidade no campo ou para o campo, nem uma escola da cidade no campo, mas uma escola do campo, com a cultura, os valores e a identidade dos sujeitos que vivem, trabalham, sonham, aprendem e se educam no campo.
O terceiro volume da Coleção, por uma educação básica do campo, tem como título: Projeto Popular e Escolas do Campo. Esse terceiro volume tem por objetivo dar continuidade à reflexão e ao debate sobre a Educação básica do campo, que mais sistematicamente vem sendo articulada no Brasil, desde 1998. Busca, num primeiro momento, refletir num projeto popular para o Brasil que nosso povo deseja construir e, num segundo momento, refletir nas escolas do campo e como elas se inserem na dinâmica das lutas pela implementação desse projeto. O documento traz como reflexão o texto de César Benjamim: Um projeto popular para o Brasil. Benjamim estimula nossa reflexão sobre o projeto popular para o Brasil, comentando cada um dos termos da proposta: "projeto, popular e Brasil". Em seguida questiona se o referido projeto é necessário e exeqüível. Analisa a necessidade de adotar princípios assim como de mudanças na política dominante para tornar possível o projeto proposto. Em seguida Caldart (2000) situa a experiência concreta do MST no contexto de luta por um projeto popular para o Brasil e nele, do campo. O eixo fundamental de sua reflexão é a caminhada da educação do campo.
Afirma que existe no Brasil uma importante mobilização organizada pelo povo do campo em prol da Reforma Agrária e de uma justa política agrícola. E, nessa mobilização, ocupa lugar de destaque a educação do campo. Existe de fato uma nova prática de escola que está sendo construída nesse movimento. As educadoras e os educadores do campo vêm participando intensamente do processo de transformação que nele vem acontecendo e estão convencidos de que é preciso aprender a potencializar mais os elementos presentes nas diversas experiências, e transformá-los em um movimento consciente de construção das escolas do campo como escolas que ajudem no processo mais amplo de humanização, e de reafirmação dos povos do campo como sujeitos do próprio destino, de sua história. O texto de Caldart parte da experiência particular do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), um dos sujeitos sociais que vêm pondo o campo em movimento, por meio da sua luta incansável para que se realize a Reforma Agrária no Brasil.
O texto apresenta dez lições principais da caminhada do MST em sua relação com a escola, refletindo-as desde o ponto de vista da reflexão que estamos fazendo em torno da educação do campo. Segundo Caldart (2000), fundamentados nas experiências acumuladas pelo MST sobre a questão da educação, podemos extrair algumas lições: a escola não move o campo, mas o campo não se move sem a escola. Quem faz a escola do campo são os povos do campo, organizados e em movimento. As lutas sociais dos povos do campo estão produzindo a cultura do direito à escola no campo; quanto mais amplos são os objetivos de uma organização, maior é a valorização da escola pelos seus sujeitos. A escola do campo ajuda a formar lutadores do povo quando trabalha com dois elementos básicos: raiz e projeto. A escola do campo precisa ser ocupada pela pedagogia do movimento que forma os sujeitos sociais do campo; as relações sociais são a base do ambiente educativo de uma escola; sem um coletivo de educadores não se garante o ambiente educativo, e escola do campo é escola em movimento. Uma escola do campo é aquela que trabalha com os interesses, a política, a cultura e a economia dos diversos grupos de trabalhadores e trabalhadoras do campo.
É uma escola com o jeito, o rosto e a identidade dos sujeitos que vivem, trabalham e estudam no campo. Uma escola do campo é uma escola que reconhece e ajuda a fortalecer os povos do campo como sujeitos sociais, que também podem ajudar no processo de humanização do conjunto da sociedade, com suas lutas, sua história, seu trabalho, seus saberes, sua cultura, seu jeito de ser e viver. As escolas do campo devem ajudar a formar os lutadores do povo. Os lutadores do povo são pessoas que estão em permanente movimento pela transformação da injustiça que reina em nossa sociedade. São movidos pelo sentimento de dignidade, de indignação contra as injustiças, e de solidariedade com as causas do povo. Não estão preocupados apenas em resolver os seus problemas, conquistar os seus direitos, mas sim em ajudar a construir uma sociedade mais justa, mais humana, na qual os direitos de todos sejam respeitados e na qual se cultive o princípio de que nada é impossível de mudar.
Por isso se engajam em lutas sociais coletivas e se tornam sujeitos da história. Uma escola do campo fortalece os processos de enraizamento humano pelo cultivo da memória, da mística e dos valores de seus sujeitos que vivem e trabalham na terra. Celebrar (a mística), construir, e transmitir especialmente às novas gerações os valores, a memória coletiva da luta pela terra e pela escola e nela, pelos direitos sociais constitui um dos traços fundamentais das escolas do campo. O quarto volume da Coleção, Por uma educação do campo, traz como tema: a educação do campo: identidade e políticas públicas. O documento foi escrito logo depois do Seminário Nacional Por uma Educação do Campo, realizado no ano de 2002, entre os dias 26 e 29 de novembro, no Centro Comunitário Athos Bulcão, no Campus da Universidade de Brasília-DF.
Houve, nesse evento, 372 participantes de 25 estados, representando várias Organizações Sociais: Movimento das Mulheres Trabalhadoras Rurais, Movimento dos Atingidos por Barragens, Movimento dos Pequenos Agricultores, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, Movimentos Indígenas, Conselho Indigenista Missionário, Comunidades Quilombolas, Pastoral da Juventude Rural, Comissão Pastoral da Terra, Escola-Família Agrícolas, Movimento de Organização Comunitária, entre outras.
Também participaram representantes de diversas universidades do país, de secretarias municipais e estaduais de educação e de outros órgãos públicos federais. A organização do Seminário contou com estudos sobre a situação e as perspectivas do povo do campo no Brasil de hoje; de experiências de como vêm sendo construídas e implementadas as políticas públicas em nível municipal, estadual e federal e uma reflexão atenta de como estão sendo implementadas as Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo, recentemente aprovada pelo Conselho Nacional de Educação; socialização das experiências de construção de escolas do campo e os desafios a serem enfrentados nesta caminhada. O Caderno número quatro da Coleção Por Uma Educação do Campo afirma ainda como fundamental a escolarização da população do campo e entende que a educação compreende todos os processos sociais de formação das pessoas como sujeitos do próprio destino. Assim a educação tem relação com cultura, com valores, com jeito de produzir, com formação para o trabalho e para a participação social.
Nesse sentido, Caldart (2002) identifica alguns traços que considera fundamentais para pensarmos a educação do campo: a educação do campo identifica uma luta pelo direito de todos à educação; os sujeitos da educação do campo são os sujeitos do campo; a educação do campo se faz vinculada às lutas sociais do campo; a educação do campo se faz no diálogo entre seus diferentes sujeitos; a educação do campo identifica a construção de um projeto educativo; a educação do campo inclui a construção de Escolas do Campo; as educadoras e os educadores são sujeitos da educação do campo. O documento apresenta quatro textos importantes para a Educação do Campo na perspectiva da luta por políticas públicas: o primeiro traz na íntegra as "Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo: Parecer do CNE/CEB n. 36/2001 e Resolução CNE/CEB n. 01/2002"; o segundo, do professor Bernardo Mançano, da UNESP, "Diretrizes de uma caminhada", é um comentário pertinente sobre o documento do CNE/CEB; o terceiro texto traz as "Diretrizes Nacionais para o funcionamento das escolas indígenas", Resolução CNE/CEB, n. 3/1999, e o quarto da professora Rosa Helena Dias da Silva, membro do Conselho Missionário Indigenista (CIMI), órgão da CNBB, faz uma leitura das "Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo", com base na temática da educação escolar indígena, comparando e aproximando essas caminhadas. É importante ressaltar que, a começar do Caderno de número quatro da Coleção, não será usado mais o termo educação "básica" por entender-se que os sujeitos que vivem e trabalham no campo têm o direito e o dever de estudar para além do Ensino Médio (última etapa formal da educação básica) e também de irem além dos limites da escola formal. Desse modo, também o Caderno de número cinco da Coleção reafirma essa nova concepção de educação:
A articulação e o movimento foram denominados inicialmente de Por Uma Educação Básica do Campo; a partir dos debates realizados no seminário nacional de 2002 alteramos o nome para Por Uma Educação do Campo, em vista de afirmar, primeiro, que não queremos educação só na escola formal; temos direito ao conjunto de processos formativos já constituídos pela humanidade; e segundo, que o direito à escola pública do campo pela qual lutamos compreende da educação infantil à universidade. (Coleção Por Uma Educação do Campo: 2004, p.19).
O Caderno de número cinco traz como objetivo socializar as análises das referências teóricas que estão sendo construídas por diferentes sujeitos, ao analisar o próprio campo e o projeto político e pedagógico de Educação do Campo. Para isso o caderno traz quatro textos, o primeiro de Caldart, com sua leitura atenta à luta por terra e por direitos, protagonizada pelos movimentos sociais chama a atenção para alguns elementos que considera fundamentais na construção de um projeto político e pedagógico da Educação do Campo. A identidade dessa educação, a partir de seus sujeitos, da cultura, do trabalho, das lutas sociais e modos de vida dos camponeses, forma um conjunto de condições que não se limitam à escola, mas dela também se alimentam pela sua vocação universal de ajudar no processo de humanização das pessoas. O segundo texto, escrito por Fernandes e Molina, desenvolve uma reflexão que busca ampliar a compreensão do campo e as múltiplas faces do desenvolvimento capitalista, explicitando a existência de diferentes paradigmas de desenvolvimento em confronto neste território.
Dessa forma, a educação do campo tem-se configurado como uma das estratégias que pode provocar transformações no campo brasileiro porque o toma não só como espaço da produção, mas como território de relações sociais, de cultura, de novas relações com a natureza e como território de vida e vida plena.
3.1 O PROGRAMA NACIONAL DE EDUCAÇÃO NA REFORMA AGRÁRIA (PRONERA) E O MOVIMENTO DE LUTA POR POLÍTICAS PÚBLICAS DE EDUCAÇÃO DO CAMPO:
O compromisso de dar continuidade à luta por uma educação do campo empreendida pelos sujeitos sociais ganha força com uma das recentes conquistas materializadas no Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária, cuja proposta começou a se consolidar no I ENERA. Aprovado em abril de 1998, vinculado ao então Ministério Extraordinário de Política Fundiária, atualmente Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), e, posteriormente, em 2001, incorporado ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, o PRONERA é um programa de educação de trabalhadores rurais em Projetos de Assentamentos de Reforma Agrária. Tem como "princípio operacional" as parcerias entre instituições estatais (Instituições de Ensino Superior, Superintendências Regionais do INCRA, Prefeituras, Governos Estaduais e Secretarias Municipais e Estaduais de Educação, Agricultura, Saúde e outras afins) e movimentos sociais especificamente do campo, sendo o MST o parceiro mais presente, tanto na elaboração como na execução desse programa educacional. Percebe-se, pois, um movimento histórico de conquista pelos movimentos sociais do campo, articulação nacional Por uma Educação do Campo, de políticas públicas que garantam a realidade da educação do campo. Trata-se da conquista do direito à educação que considere os espaços-tempos-saberes dos sujeitos que vivem no campo e do campo.
Como analisa Fernandez (2000), é importante compreender que a Educação do Campo é um conceito forjado por este movimento do campo. Trata-se do direito de uma população conceber o mundo segundo sua realidade social e cultural. A respeito da proposta formal, o PRONERA, por meio do Manual de Operações, documento que se destina à orientação dos interessados (Universidades, Movimentos Sociais entre outros) nos procedimentos para apresentação de projetos, sugere algumas idéias para emplementação de uma educação do campo com base nos seguintes objetivos:
Geral:
. Fortalecer a educação nos Projetos de Assentamento de Reforma Agrária, estimulando, propondo, criando, desenvolvendo e coordenando projetos educacionais, utilizando metodologias voltadas para a especificidade do campo, tendo em vista contribuir para o Desenvolvimento Rural Sustentável.
Específicos:
Alfabetizar e oferecer formação e educação fundamental a jovens e adultos nos Projetos de Assentamentos de Reforma Agrária;
Desenvolver a escolarização e formação de monitores para atuar na promoção de educação nos projetos de Assentamentos de Reforma Agrária;
Oferecer formação continuada e escolarização média e superior aos educadores de jovens e adultos – EJA – e do ensino fundamental nos Projetos de Assentamento de Reforma Agrária;
Oferecer aos assentados escolarização e formação técnico-profissional com ênfase em áreas do conhecimento que contribuem para o Desenvolvimento Rural Sustentável;
Produzir os materiais didático-pedagógicos necessários à consecução dos objetivos do programa.
Portanto, em conformidade com esses objetivos, os projetos apoiados seriam os de:
Alfabetização e escolarização de jovens e adultos, e capacitação e escolarização de monitores para o ensino fundamental em Projetos de Assentamentos de Reforma Agrária;
Formação continuada e escolarização de professores de Projetos de Assentamentos de Reforma Agrária (Nível Médio e Superior – Curso Pedagogia da Terra);
Formação técnico-profissional e escolarização – nível fundamental ou médio – de jovens e adultos de Projetos de Assentamento de Reforma Agrária.
Está claro, no Manual de Operações, que a própria gestão nacional e estadual dos projetos do PRONERA terá representação dos movimentos sociais. Nacionalmente, participa do Colegiado Executivo e da Comissão Pedagógica no âmbito do Estado da Federação, no colegiado Executivo Estadual. Cabe ressaltar que a equipe que elaborou o Manual de Operações contou com a participação de representantes dos movimentos sociais (MST e CONTAG) e de Universidades (Unb) além de representantes do INCRA. Mesmo assim, do processo que constitui o PRONERA, do movimento social à sua organização formal, alguns aspectos chamam atenção.
O primeiro dele é o fato de estar ligado burocraticamente ao Ministério do Desenvolvimento Agrário e não ao Ministério da Educação, afinal, trata-se de uma política pública para a educação. O PRONERA não é uma política pública permanente, os projetos apoiados podem ou não continuar a serem desenvolvidos, e a educação requer políticas públicas que dêem continuidade e não políticas compensatórias. A proposta de escolarização é originária do movimento pela educação do campo, incorporada ao PRONERA na formulação dos objetivos propostos pelo Programa, assim como em suas formulações teórico-metodológicas e pedagógicas.
Desse modo, destacamos a presença do MST, este possui um histórico acúmulo nas formulações sobre educação do campo, sobretudo ricas experiências, as quais têm importâncias orientadoras no processo de construção do PRONERA na qualidade de política pública educacional do campo. Uma conquista importante nesse movimento de luta por uma educação do campo foi a publicação do Caderno de Subsídios intitulado: Referências Para Uma Política Nacional de Educação do Campo (2004), produto do Seminário Nacional de Educação do Campo realizado em outubro de 2003, que contou com a participação dos sujeitos públicos e sociais envolvidos na concepção, na elaboração e na execução das políticas públicas para as populações do campo brasileiro. Esse caderno traz uma importante contribuição para refletirmos sobre as condições em que se encontra a educação e formação do professor do campo. Na primeira parte, apresenta o diagnóstico da Escolarização do Campo no Brasil. Constam informações sobre a situação socioeconômica da população que reside no meio rural, o acesso, a qualidade da educação, o perfil da rede de ensino, as condições de funcionamento das escolas e a situação dos professores do meio rural. Em relação à formação do professor, o documento destaca a importância dele no processo de progressão e aprendizado dos alunos.
Apesar dessa constatação, as condições de trabalho desses profissionais têm-se deteriorado cada vez mais. No caso específico da área rural, além da baixa qualificação docente e de salários inferiores aos da zona urbana, eles enfrentam, entre outras, as questões de sobrecarga de trabalho, alta rotatividade e dificuldades de acesso à escola, em virtude das condições das estradas e da falta de ajuda de custo para locomoção. O documento ainda revela dados sobre o nível de escolaridade dos professores, mais uma vez, a condição de carência da zona rural é superior à das áreas urbanas. No Ensino Fundamental de 1ª a 4ª série, apenas 9% apresentam formação superior, enquanto, na zona urbana, esse contingente representa 38% dos docentes. O percentual de docentes com formação inferior ao Ensino Médio corresponde a 8,3% na zona rural, indicando a existência de 18.035 professores sem habilitação mínima para o desenvolvimento de suas atividades. Isso sem considerar aqueles que, apesar de terem formação em nível médio, não são portadores de diploma de ensino médio normal.
Na zona urbana, esse contingente corresponde a 0,8%. Nas séries finais do ensino fundamental, o percentual de docentes com apenas o Ensino Médio completo corresponde a 57% do total. O nível de formação dos docentes do Ensino Médio também reforça a questão de desigualdade entre a educação básica oferecida à população da zona rural e a da zona urbana. Apesar de uma rede física bastante reduzida, com 9.712 docentes que atuam em 948 estabelecimentos, 22% têm escolaridade de nível médio, isto é, 2.116 funções docentes são exercidas por profissionais que atuam no mesmo nível de ensino que a sua escolaridade. Mais grave ainda é a existência de docentes com formação no nível de Ensino Fundamental. O documento traz também os dados do SAEB 2001 que mostram ser a remuneração dos professores das áreas rurais bem inferior àquela de seus colegas que lecionam em escolas urbanas. Os professores que atuam na 4ª e 8ª séries do ensino fundamental, em exercício na área rural, recebem praticamente a metade do salário dos que atuam na área urbana. Diante desse quadro, é evidente a necessidade do estabelecimento de uma política para a educação que valorize os profissionais da educação no campo e na cidade.
Nesse sentido, destacamos o convênio do PRONERA/UFES/MST para ofertar o Curso de Pedagogia da Terra (Licenciatura em Pedagogia para Educadores e Educadoras da Reforma Agrária) aos professores dos acampamentos e assentamentos rurais. O Curso Pedagogia da Terra/ES vem atender a uma demanda de assegurar profissionais com formação e titulação adequados às características e aos desafios da realidade do campo, para atuarem na escolarização da educação infantil até o ensino médio nas áreas de assentamentos rurais. A qualificação de educadores traz o sentido de suprir uma deficiência histórica no meio rural, possibilitando o acesso ao ensino superior aos jovens do campo. No Espírito Santo, a primeira turma já se formou, e se encontra em andamento o processo de formação da segunda turma. O PRONERA solicitou uma avaliação do processo de formação dos professores do Curso Pedagogia da Terra à Universidade Federal do Espírito Santo – UFES, que foi realizada em 2004 e sistematizada em um relatório pelo coordenador da pesquisa enviada à coordenadora geral do PRONERA.
3.2 O MST E AS MATRIZES PEDAGÓGICAS DA EDUCAÇÃO-FORMAÇÃO DO PROFESSOR SEM-TERRA.
Na origem do trabalho do MST com a educação escolar, podemos identificar, conforme os estudos feitos por Caldart (2000), pelo menos cinco fatores: o primeiro diz respeito ao nascimento do MST como movimento social, com o componente específico da realidade da educação em nosso país e particularmente da situação do meio rural. O mesmo modelo de desenvolvimento que gera os sem-terra também os exclui de outros direitos sociais, entre eles o de ter acesso à escola. A maioria dos sem-terra tem um baixo nível de escolaridade e uma experiência pessoal de escola que não deseja para seus filhos: discriminação, professores despreparados, reprovação e exclusão. O segundo fator foi a preocupação das famílias sem-terra com a escolarização de seus filhos. O terceiro elemento ou circunstância que pressionou fortemente o início dos trabalhos do MST com a educação escolar foi a iniciativa das mães e professoras em levar adiante essa preocupação que aparecia nas famílias sem-terra. Essa iniciativa incluía três dimensões principais: a organização das atividades educacionais com as crianças acampadas; a pressão exercida para mobilização das famílias e lideranças de cada acampamento e assentamento em torno da luta por escola e a preocupação das professoras com a própria articulação e formação para assumirem a tarefa de educar as crianças sem-terra de um jeito diferente. De acordo com Caldart (2000, p. 150):
Na criação das chamadas equipes de educação pode ser identificado o início da discussão do que seria depois a proposta pedagógica do MST. A equipe (de educação) surgiu por iniciativa de algumas professoras que estavam iniciando o seu trabalho nas recém-criadas escolas dos acampamentos e assentamentos, tendo necessidade de discutir sua prática com as companheiras. O que moveu o grupo (umas dez professoras) foi a certeza de que uma escola de assentamento e ligada ao MST não pode ser igual às escolas tradicionais. Ela deve ser diferente.
O último fator que impulsionou os trabalhos do MST com a questão da educação trata do valor que o estudo tinha na vida das pessoas que ajudaram a organizar o MST e que se tornaram suas principais lideranças. Nessa trajetória da questão da educação no MST, Caldart (2000) afirma, como referência cronológica nacional, o Primeiro Encontro Nacional de Professores de Assentamento, que aconteceu em julho de 1987, no município de São Mateus, Espírito Santo, organizado pelo MST para começar a discutir uma articulação nacional do trabalho que já se desenvolvia, de forma mais ou menos espontânea, em vários estados brasileiros. O encontro nacional de 1987 representou uma mudança de eixo no processo de preocupação da escola pelos sem-terra. Da organização mais ou menos espontânea, surgida nos estados do centro-sul do país, nasceu o Setor de Educação do MST, que passou a ser organizado com esse nome nos estados, principalmente a partir de 1988, acompanhando a nova estruturação do Movimento em setores, com elos desde a base local até as instâncias nacionais.
A principal função do Setor de Educação seria a de articular e potencializar as lutas e as experiências educacionais já existentes, ao mesmo tempo que desencadear a organização do trabalho onde ele não havia surgido de forma espontânea, ou nos assentamentos e acampamentos que fossem iniciados a partir daquele momento. Foi com a participação dos coletivos municipal e estadual que o Coletivo Nacional de Educação, em 1990, chegou à conclusão de que devia ser elaborada por escrito uma proposta de educação do MST. Com base nas discussões acumuladas até aquele momento, chegou-se ao consenso de que apenas o relato oral não dava conta de sistematizar uma reflexão que ajudasse os educadores a pensar a própria prática. De acordo com Caldart (2000), o desafio era duplo: avançar na elaboração da proposta e simultaneamente traduzi-la numa linguagem que fosse acessível ao conjunto do Movimento, em especial aos professores e militante.
Nesse sentido, o primeiro texto escrito: O que queremos com as escolas dos assentamentos passou por cinco ou seis versões antes de ser editado sob a forma de cartilha, em meados de 1991. O conjunto de materiais escritos pelo Movimento que se seguiram a esse primeiro texto teve um processo semelhante. Na produção inicial dos princípios da educação do MST, podem ser identificadas três fontes principais: a experiência dos sujeitos que estavam diretamente envolvidos com o trabalho de educação nos assentamentos e acampamentos; o próprio Movimento por meio de seus objetivos, princípios e aprendizados coletivos e alguns elementos de teoria pedagógica presentes na prática de algumas professoras e também pedagogos que começaram a ajudar na sistematização da proposta educativa do Movimento. Destaca-se, neste sentido, a ênfase no estudo de Paulo Freire e também de alguns pensadores e pedagogos socialistas: Krupskaya, Pistrak, Makarenko e José Martí, estes dois últimos já eram estudados há mais tempo dentro do MST, pelas contribuições que traziam a outros setores de atuação do Movimento. Podemos afirmar, como tentativa de síntese, que o eixo fundamental da elaboração da proposta educativa do MST, desde o início, foi e continua sendo a prática dos sujeitos sem-terra e a construção de processos educativos ligados à realidade desses sujeitos que vivem e trabalham na terra.
Ao analisar historicamente o surgimento do MST no Brasil, Caldart (2000) identifica-o como sujeito coletivo que, por meio de sua organização, luta e defesa da vida, constrói um conjunto de pedagogias que põe em movimento o processo de formação-educação dos Sem Terra. Essas pedagogias nascem do seio do próprio Movimento, que nos seus diferentes momentos, espaços, tempos (no acampamento, no assentamento, numa marcha, numa celebração-mística, no enfrentamento com a polícia) põe em ação valores, princípios, utopias, sentimentos que aos poucos vão possibilitando um processo de formação e educação de seus membros.
Dessa forma, podemos pensar o MST como sujeito coletivo pedagógico, especialmente quando identificamos as duas dimensões fundamentais do processo de formação dos sem-terra ligados ao MST: a que vincula cada família sem-terra à trajetória histórica do Movimento e à luta pela terra e pela Reforma Agrária no Brasil, tornando-a fruto e raiz (sujeito) dessa história; a que faz de cada pessoa que integra o MST um ser humano em transformação permanente, à medida que participa como sujeito das vivências coletivas que exigem ações, escolhas, tomadas de posição, superação de limites, e assim conformam seu jeito de ser, sua humanidade em movimento.
As perguntas que podemos fazer com base nas análises de Caldart (2000) são: quem é o sujeito educativo nesse processo? Quem está formando ou educando os Sem Terra? Qual é a base da concepção de formação humana que está na experiência educativa do MST? Nesse sentido, o MST se constitui como movimento educativo do processo de formação dos sem-terra quando, por meio dele (do Movimento), passam as diferentes vivências educativas de cada pessoa que o integra, seja em uma ocupação, um acampamento, um assentamento, uma marcha, uma escola, uma celebração ou mística, ou um curso como o de Pedagogia da Terra/ES. Para Caldart (2000, p.205):
Os sem-terra se educam como Sem Terra (sujeito social), pessoa humana, nome próprio sendo do MST, o que quer dizer construindo o Movimento que produz e reproduz sua própria identidade ou conformação humana e histórica. Mas quem é este Movimento que se transforma em matriz educativa de seus próprios sujeitos?
No movimento, os sem-terra aprendem que o mundo e o ser humano estão para ser feitos ou, que o mundo não é o mundo que está sendo (no sentido da fatalidade histórica) como afirma Freire (1997) e que o movimento da realidade, constituído basicamente de relações que precisam ser compreendidas, produzidas ou transformadas, deve ser o grande educador desse processo formativo. Existem alguns processos pedagógicos básicos que podem ser identificados no Movimento e que possibilitam a formação-humanização dos sem-terra do MST, entre eles podemos citar: luta, organização, coletividade, terra, trabalho e produção, cultura e história. As principais matrizes pedagógicas, no sentido de processos educativos básicos que possibilitam a formação dos sem-terra são: a pedagogia da luta social; a pedagogia da organização coletiva; a pedagogia da terra e a pedagogia da cultura.
3.3 A MATRIZ PEDAGÓGICA DA LUTA SOCIAL
O Movimento é constituído pela luta e, concomitantemente, a conforma. Ser sem-terra quer dizer estar permanentemente em luta para transformar a realidade de opressão e exclusão em que se encontram milhares de seres humanos que foram excluídos não só da terra como também da própria dignidade como pessoa.
Assim podemos afirmar como Caldart (2000, p.208):
Tudo se conquista com luta e a luta educa as pessoas. Neste sentido, o virar o mundo de ponta-cabeça, que está presente na ação de ocupar um latifúndio, também está em tornar uma terra produtiva, em conquistar o apoio da sociedade para a causa da Reforma Agrária, em demonstrar quando um saque de alimentos pode não ser considerado um roubo, em conseguir trazer a escola para o campo, em aprender a ler mesmo já tendo muita idade, em manter-se como família nas diversas ações da luta pela terra, em enfrentar derrotas, em manter o brio nas situações de indignidade.
Conforme vimos no primeiro capítulo deste trabalho, os sem-terra educam-se e humanizam-se ao buscarem transformar a situação de miséria e de exclusão a que estão submetidos. Ao lutarem contra a injustiça e a exploração, acabam por rebelar-se contra a desumanização a que foram relegados pelo sistema capitalista. É, nesse processo dinâmico e contraditório de luta pela terra e nela pelas condições dignas de existência, que se afirma sua dignidade e sua humanidade. Esse processo em si mesmo é educativo. Olhando para a nossa sociedade e para o caos social e humano em que estamos inseridos na condição de país, de modelo de sociedade e concepção de mundo, o MST, fundado em suas práticas e vivências educativas que se dão na luta pela terra e nela pela ampliação dos direitos fundamentais do ser humano, pode-nos ajudar a pensar um outro tipo de sociedade e de ser humano.
Com o aprendizado de que nada nos deve parecer impossível de mudar, vem outro muito importante: o aprender a produzir utopias, para construir um olhar para a vida e para o mundo que projete um futuro balizado na convicção de que tudo pode ser diferente do que é: a esperança de que podemos construir uma nova sociedade e um novo ser humano. Antes de entrar na luta pela terra, as famílias sem-terra têm diante de si a fome, a doença, o desemprego, a exclusão e a desesperança.
Quando ocupam uma terra, essas famílias põem os pés no seu futuro e já enxergam aquela terra produzindo a fartura de alimentos que naquele momento ainda lhes falta; E, se o MST realizar seu projeto educativo, logo estarão não apenas enxergando a sua terra cultivada, mas cultivando um olhar que alcance todas as terras do país sendo produzidas, e produzindo gente com saúde, dignidade, sonhos. Outro aprendizado que nasce da luta pela terra é o da postura política e cultural de contestação social; ao agir para transformar a situação de miséria e de exclusão na qual se encontram, os sem-terra contribuem para a superação das injustiças sociais. Concordamos com Caldart (2000) quando afirma que o sentimento de indignação diante das injustiças da sociedade não é inerente à condição de oprimido, mas um aprendizado a ser construído, sendo a luta social um ambiente bastante fecundo para que ele se produza. Uma das condições para a formação de contestadores ou lutadores do povo é a capacidade de sensibilidade social ou aquilo que poderíamos denominar de indignação ante as injustiças.
Quem não é capaz de sentir de todo o coração e de toda alma a injustiça cometida contra um ser humano não é capaz de se tornar um lutador ou contestador social. Nesse sentido, podemos nos perguntar se o Curso Pedagogia da Terra/ES contribui para a formação de um professor com essas características. O Curso Pedagogia da Terra/ES em seus diferentes espaços-tempos-saberes contribui para o desenvolvimento da reflexão crítica, do desenvolvimento de valores como solidariedade, fraternidade, senso de justiça e utopia tão necessários aos que desejam e lutam por uma nova sociedade e um novo ser humano? Na forma como realizam as tarefas, no empenho, na organização, nas celebrações (mística), na vontade de aprender novos conhecimentos e na ajuda mútua entre os alunos, manifesta-se de forma muito clara a dimensão da luta social. Uma das professoras que lecionou no Curso Pedagogia da Terra/ES assim se refere ao jeito de ser dos alunos:
Eles nos ensinam um jeito especial de ser professor, em tudo que fazem. A forma como se organizam para trabalhar, seja individualmente ou no coletivo, está pautada no respeito ao outro, no direito à palavra de cada um. Mostram-nos uma maneira diferente de se posicionar frente aos desafios e problemas da vida. Revoltam-se, mas se solidarizam; calam-se, para ensinar com gestos lições simples da vida.
Seu espírito de solidariedade e trabalho coletivo é imensurável, para tornar cada uma das etapas do curso mais proveitosa possível às necessidades colocadas pelo Setor da Educação do Movimento Sem Terra.
A nossa sociedade atual, fundada na concentração da terra e das riquezas nas mãos de uma pequena elite nacional e transnacional, busca incutir em nossas mentes e corações, por meio da mídia e da totalidade da vida social, a insensibilidade ante os problemas sociais, a banalização da vida e a perda do valor da dignidade do ser humano, ora ignorando-os ou banalizando-os, ora ainda os reduzindo a problemas do indivíduo que, por falta de competência e mérito, não foi capaz de superá-los ou conquistar seu espaço no mercado.
O MST, por meio do Curso Pedagogia da Terra/ES, busca recuperar a capacidade humana de abertura e bem querer ao próximo, levando-nos a sentir-nos solidários do mesmo destino que nossos irmãos; produz em cada um de seus participantes uma nova maneira de ser e de viver. Podemos identificar nessa prática um aprendizado muito importante que contribui para a formação do professor sem-terra como um lutador do povo: a luta por justiça social.
Portanto, de acordo com Caldart (2000), afirmamos que o MST, por meio do Curso Pedagogia da Terra/ES, educa e forma os sem-terra no movimento da própria luta pela vida. Nas pedagogias tradicionais a educação é concebida para manter a ordem e ensinar a passividade através do discurso, do verbalismo, do autoritarismo e da apatia social. O Curso Pedagogia da Terra/ES coloca em movimento a pedagogia da luta social: uma pedagogia libertadora como nos ensinou Freire (1997), na medida em que contesta, inconforma-se com a injustiça e luta por uma nova sociedade e um novo ser humano. Esse é o horizonte que define o caráter de educação do Curso Pedagogia da Terra/ES, isto é, um processo de educação que se assume como político, que se vincula organicamente com os processos sociais que visam à transformação da sociedade atual e à construção de uma nova sociedade fundada na justiça.
3.4 A MATRIZ PEDAGÓGICA DA ORGANIZAÇÃO COLETIVA
Assim como afirma Caldart (2000), acreditamos que todo ser humano necessita de raízes, e somente consegue criá-las participando de uma coletividade. Por intermédio dela, consegue manter vivos certos tesouros do passado, ao mesmo tempo em que cultiva projetos de futuro. O MST cria raízes ao enraizar os sem-terra em uma coletividade que ele mesmo constrói pela sua organização luta. Fazer parte de um movimento social como o MST é, sem dúvida, uma das experiências mais decisivas na conformação humana do sujeito sem-terra. O MST é a organização ou a coletividade produzida pelos sem-terra em luta. Nesse sentido, dizer que os sem-terra se educam por meio da organização se refere aos dois significados combinados: os sem-terra se educam à medida que se organizam para lutar e se educam também por tomar parte em uma organização que lhes é anterior, quando considerados como pessoas ou família específica.
Desse modo, identificamos alguns componentes educativos dessa matriz pedagógica presentes no Curso Pedagogia da Terra/ES: o enraizamento; a coletividade em luta; a força educativa do coletivo e da comunidade. O Curso Pedagogia da Terra é formado,k em sua maioria, por professores que pertencem ao MST e que foram desenraizados, por terem sido expulsos da terra, mas também por um conjunto de processos de exclusão social a que isto acabou levando. Voltar a ter raízes é certamente uma das grandes e primeiras conquistas dos sem-terra que entram no MST e que participam do Curso Pedagogia da Terra. E é ele que permite a cada professor abrir-se para a possibilidade de continuar sua formação como sujeito. Assim destaca Caldart (2000, p. 215 e 216):
O MST se enraíza enraizando os sem-terra em uma coletividade que eles mesmos constroem através de sua luta e organização. Fazer parte da coletividade chamada MST é, sem dúvida, uma das experiências decisivas na conformação humana do sujeito Sem Terra. Na experiência de formação dos sem-terra pelo Movimento, pois, a organização coletiva também figura como princípio educativo. Os espaços-tempos de enraizamento estão presentes no grupo do acampamento, na terra, na família sem-terra, na cultura material de quem luta e trabalha na terra, nas diversas práticas sociais, na possibilidade de estar em uma escola, (em um Curso como o da Pedagogia da Terra) e na própria cultura do Movimento (grifo nosso).
A maior contribuição reflexiva dessa pedagogia da organização coletiva presente na experiência de formação humana do Curso Pedagogia da Terra/ES está em trazer de volta para nossa atenção a potencialidade educativa das relações sociais ou, na expressão de Arroyo (2000), seu peso formador e humanizador. Nessa perspectiva, a experiência de participar do Curso Pedagogia da Terra/ES é formadora dos professores sem-terra basicamente pelas relações sociais que produz e reproduz e que acabam interferindo pedagogicamente em diversas dimensões do ser humano. Essa dimensão educativo-formadora da organização coletiva se manifesta nos diferentes espaços-tempos-saberes do Curso Pedagogia da Terra/ES e se configura como um dos princípios da educação do curso: na auto-organização dos alunos, por exemplo. Auto-organizar-se significa ter um tempo e um espaço autônomos para que os estudantes possam encontrar-se, discutir e organizar as próprias atividades. Assim se expressa uma aluna do Curso:
Trabalhar o coletivo numa sociedade capitalista é muito difícil. As pessoas quando chegam no Movimento Sem Terra estão muito impregnadas dessa mentalidade individualista do capitalismo. E, às vezes, o processo de se passar por isso é muito doloroso. Se a gente falar assim eu sou um socialista, eu vivo como um socialista vamos estar mentindo. Nós vivemos em uma sociedade capitalista e a gente ainda é muito individualista. Trabalhar a coletividade pra nós enquanto sociedade capitalista é um processo doloroso. Não é fácil estar numa turma de 58 pessoas estudando, trabalhando o tempo todo juntos, mas pra nós é um processo de extrema importância que vai criando em nós as condições de trabalhar melhor o coletivo depois que sairmos daqui. Todos os problemas, as dificuldades são necessárias para passarmos pelo processo de transformação e de crescimento.
Há muitos aprendizados que estão em jogo nesta prática: a capacidade de agir por iniciativa própria, ao mesmo tempo respeitar as decisões tomadas pelo coletivo; a busca de soluções para os problemas sem esperar salvação de fora; o exercício da crítica e da autocrítica; a capacidade de liderança; a atitude de humildade, mas também de autoconfiança e de ousadia; o compromisso pessoal com os resultados de cada ação coletiva e o espírito de sacrifício em prol do coletivo.
3.5 A MATRIZ PEDAGÓGICA DA TERRA OU COMO OS PROFESSORES SEM-TERRA SE EDUCAM EM SUA RELAÇÃO COM A TERRA, O TRABALHO E A PRODUÇÃO.
Essa matriz pedagógica busca estabelecer o elo entre a terra, o trabalho, a produção e o processo de educação e formação dos sem-terra. Como afirma Caldart (2000) assim como é possível lavrar a terra, trabalhando-a para que se reproduza em vida, alimentos, beleza, também é possível lavrar o ser humano, justamente para que se produza e reproduza na plenitude de sua humanidade, no seu fazer-se humano, no seu devir histórico. O ser humano, nas várias culturas e fases históricas, revelou essa intuição segura: pertencemos à Terra; somos filhos e filhas da Terra; somos Terra que atingiu um estágio de consciência e de reflexividade. Daí que a palavra homem vem de húmus. Viemos da Terra e a ela voltaremos. "A terra não está à nossa frente como algo distinto de nós mesmos. Temos a Terra dentro de nós" (Boff, 1999, p. 72).
Essa matriz pedagógica é uma das mais antigas, pois se faz presente na formação do próprio Movimento e põe em movimento a formação dos sem-terra mediante o processo de produção das condições materiais da existência. O Curso Pedagogia da Terra/ES coloca em movimento um processo de formação e educação dos professores sem-terra através dos espaços-tempos-saberes, promovendo o reencontro dos professores sem-terra com a terra, com o conhecimento, que acaba sendo também uma forma de encontro consigo mesmo, com seu ser que se havia perdido ou que o sistema lhe havia negado.
O Curso Pedagogia da Terra/ES possibilita o trabalho na terra: preparar a terra, plantar a semente, adubar, molhar e cuidar. Essas ações nos dizem que as coisas não nascem prontas, precisam ser cuidadas e cultivadas. São as mãos do agricultor, do camponês, da camponesa, da criança, do jovem, do velho, do professor, da professora que vão fazendo com que cada planta cresça e se desenvolva, que cada criança aprenda e tenha orgulho de ser sem-terra. É do trabalho de suas mãos que os professores sem-terra se tornam sujeitos de sua formação e produzem sua existência, produzem o pão, o leite, o arroz, o feijão, o remédio, o conhecimento e tudo que necessitam para viver com dignidade e humanidade. Se no capitalismo o fruto do trabalho é privilégio de uma minoria, no Curso Pedagogia da Terra os resultados do trabalho são distribuídos entre todos de forma igualitária, não havendo necessitados entre eles. Nesse sentido, assim se expressou um professor e uma aluna do curso:
O trabalho como auto-educativo por si próprio. Porque a terra é o fundamento da própria construção do trabalho. Eu acho que humanizar no sentido cultural, do ponto de vista marxista o trabalho é a realização humana, é a referência fundamental; e esse trabalho se refere fundamentalmente a terra. Nesse sentido há uma pedagogia porque a marca do MST aponta para o socialismo ou da superação da propriedade privada no sentido de que a terra é da natureza, a terra não é de ninguém, a terra é de quem nela trabalha. O tempo trabalho, todos os dias nós trabalhamos divididos por setores, então no momento agora estou no setor de pomar e viveiro e tem outros setores. Acredito assim que é uma contribuição que a gente dá para o local que estamos. Esse local aqui nós consideramos como nosso porque a partir do momento que você sai de sua casa para ficar aqui 40 dias então a gente considera como nosso. Então temos de ter cuidado na produção.
É, nesse processo coletivo de produzir sua existência material e espiritual, que os professores sem-terra se formam e se educam. Nesse sentido, o trabalho ganha uma dimensão educativa e formativa dos professores sem-terra. De acordo com Menezes (2003), o trabalho constitui uma atividade humana no processo de transformação da natureza e, conseqüentemente, na recriação de novas relações sociais. O ser humano interage, modifica e transforma a natureza e, ao transformá-la, modifica a si mesmo. Mas o ser humano não age isolado, e agindo ou trabalhando em conjunto, constrói o mundo em que vivemos. O trabalho, dessa forma, é a prática fundamental no processo de humanização e socialização dos professores sem-terra. Pelo trabalho o homem produz sua existência material e, indo além, estabelece relações sociais e culturais que possibilitam um processo de educabilidade do ser humano. No entanto, Marx (1984) nos adverte do caráter contraditório do trabalho. Se pelo trabalho o homem imprime sua marca no mundo, será pelo mesmo trabalho que as relações de exploração e extração de mais-valia irão realizar-se.
Portanto, o trabalho não pode ser visto apenas de forma positiva, pois, historicamente, ele está se dando de forma perversa para os trabalhadores. E, no capitalismo, o trabalho serve à reprodução do capital. A vida, produzida e recriada pelo trabalho humano, torna-se submetida à reprodução do capital. No Curso de Pedagogia da Terra, o trabalho tem um valor fundamental. Para professores do curso, vincular os processos educativos do curso com a realidade dos alunos significa incluir o trabalho como uma dimensão educativa fundamental na formação. Para os alunos do curso, vincular a educação com o trabalho é condição para realizar os objetivos políticos e pedagógicos do MST. Os processos pedagógicos não podem ficar alheios às exigências cada vez mais complexas dos processos produtivos, seja os da sociedade em geral, seja os dos assentamentos, em particular. E o curso realiza isso quando seleciona conteúdos vinculados ao mundo do trabalho e da produção presentes na realidade e na vida dos estudantes.
3.6 A MATRIZ PEDAGÓGICA DA CULTURA
Esta matriz pedagógica se encontra nos diferentes espaços-tempos-saberes do Curso Pedagogia da Terra/ES. A cultura se faz presente na luta pela terra, na organização coletiva, no processo produtivo, nos momentos de celebração e mística, nas palavras de ordem, nas músicas. O que nos chamou atenção no Curso Pedagogia da Terra/ES foi o sentimento de pertença ao MST que os professores demonstram nos diferentes espaços-tempos-saberes do processo de formação. Esse sentimento de pertença se manifesta por meio dos símbolos, das frases, dos cartazes, da mística, da bandeira do MST, do boné, da camisa, da organização, da postura e do comportamento de cada aluno que participa do curso. Não é somente a sala de aula que educa, e sim, todos os espaços-tempos-saberes do curso que se convertem em um ambiente educativo dos alunos, professores, coordenadores e pesquisadores. No movimento de formação do professor sem-terra, trata-se de compreender como o próprio MST se vai transformando em referencial cultural educativo dos professores sem-terra por seus símbolos e ações.
A cultura pode ser entendida sob diferentes perspectivas. Neste trabalho, entendemo-la como Caldart (2000), que a considera como um conjunto de práticas, comportamentos, valores, posturas, convicções, idéias que se produzem desde uma luta social e que projetam um mundo diferente. Nesse sentido, podemos entender a cultura como um modo de vida que articula costumes, objetos, comportamentos, convicções, valores, saberes que, embora díspares e por vezes até contraditórios entre si, possuem um eixo integrador ou uma base primária que nos permite distinguir um modo de vida de outro, uma cultura de outra, um projeto de sociedade de outro. O Curso Pedagogia da Terra intencionaliza ações, valores, comportamentos, símbolos que favorecem a formação e o processo de educação e valorização dos saberes, da cultura e da identidade dos professores sem-terra, fortalecendo a luta coletiva por uma educação no e do campo? Acreditamos que sim. Podemos identificar esse componente educativo na fala de uma das alunas do curso:
Ao longo de todo o processo capitalista neoliberal que foi imposto pra gente, o homem do campo se descaracterizou muito, nós perdemos a nossa cultura, as nossas tradições e assimilamos uma cultura externa à nossa que foi imposta a nós. O homem do campo hoje quase não se diferencia do homem urbano. O importante pra gente não é dar uma nova cara para o homem do campo e sim resgatar no homem do campo o que foi perdido realmente. Queremos valorizar a cultura, as raízes dos sujeitos do campo!
A mística, por exemplo, é um processo que pode ser interpretado nessa perspectiva de fortalecimento da identidade de ser sem-terra e de pertencer a um Movimento como é o MST. Se entendermos a mística como um dos componentes da cultura e cultura como um conjunto de práticas, comportamentos, valores, posturas, convicções, idéias que se produzem desde uma luta social e que projetam um mundo diferente, então podemos afirmar que a matriz pedagógica da cultura projeta um modo de ser que conduz à reconquista da memória histórica da luta pela terra, do cultivo dos valores de solidariedade e de justiça que possibilita o enraizamento e o processo de formação dos professores sem-terra. Se o Curso Pedagogia da Terra é portador de cultura, de valores, práticas, comportamentos que possibilitam um processo de formação e humanização dos professores sem-terra, então podemos afirmar que as ações dos sujeitos do curso são questionadoras do sistema capitalista vigente. Na contramão dos valores apregoados pela educação no sistema capitalista, como o individualismo, a competição, a mercantilização e a transformação da educação em mercadoria, o curso coloca em movimento práticas alternativas de educação, tais como o valor do coletivo, da solidariedade e ajuda mútua, a educação como direito social e dever do Estado, da cooperação e da luta por justiça social.
segunda-feira, 14 de maio de 2007
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